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Capítulo 2 – Festas do papel: os eventos que mantêm o Rio lendo em voz alta

  • Beatriz Cardeal e Junior Azevedo
  • 30 de nov. de 2024
  • 9 min de leitura

Atualizado: 18 de jul.

Se a arquitetura histórica de instituições como o Real Gabinete Português de Leitura, a Biblioteca Nacional e a Academia Brasileira de Letras foi um pilar fundamental para que o Rio de Janeiro fosse escolhido pela Unesco como Capital Mundial do Livro em 2025, o outro grande motivo é o calor humano que movimenta as feiras e festas literárias da cidade. O título recebido pela capital fluminense é fruto de anos de mobilização de bibliotecas comunitárias, coletivos culturais, feiras independentes, escolas públicas, pequenas editoras e grandes projetos. Nesse ano, o Rio se firma como uma cidade que respira literatura de muitas formas, não apenas nas prateleiras das livrarias sofisticadas, mas nos becos, nas praças, nos trens e nas lajes. Em 2025, tudo isso será celebrado com ainda mais força.

 

Bienal do Livro do Rio – Um mar de gente e palavras
(Bienal – Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)
(Bienal – Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

É difícil falar de eventos literários no Brasil sem mencionar a Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro. Realizada desde 1983, é o maior evento literário da América Latina, reunindo autores, editores, leitores, professores, crianças, influencers e curiosos em um só lugar.


O evento ocupa o Riocentro, na Zona Oeste da cidade, e se transforma em uma verdadeira cidade do livro durante dez dias. Ali, não se trata apenas de comprar obras: o que atrai tanta gente são os encontros com autores, os debates de ideias, os lançamentos aguardados e os espaços temáticos que se reinventam a cada edição.


Nos últimos anos, a Bienal tem se tornado um espaço cada vez mais plural. A curadoria passou a incluir nomes da literatura periférica, LGBTQIAPN+, indígena, negra, além da discussão de temas como o antirracismo, o feminismo e os desafios da educação pública. Os jovens formam a base mais animada do público: fazem filas quilométricas por um autógrafo de seus ídolos literários, muitos deles nascidos nas redes sociais digitais, como é o caso de autores de romance contemporâneo e fantasia.


Em 2025, com o Rio sendo Capital Mundial do Livro, a Bienal preparou uma edição histórica. A feira ampliou ainda mais o acesso de estudantes da rede pública e investiu em atividades para formação de leitores e mediadores de leitura, além de uma programação internacional vasta.


O evento, que aconteceu entre 13 e 22 de junho, bateu recorde de público, com mais de 740 mil visitantes, e superou em 23% o público da edição anterior, consolidando-se como o maior festival literário da América Latina. Além do sucesso no número de visitantes, a Bienal também impulsionou a economia do Rio, gerando um impacto econômico estimado em mais de R$ 535 milhões. 


Segundo a Unesco, essa pluralidade da Bienal foi um fator decisivo para o Rio ter sido escolhido a Capital Mundial do Livro: “uma cidade que abraça o livro com tanta festa merece mesmo estar no centro das atenções”, afirma o site da instituição.

 

Flip – Paraty e a literatura como encontro
(Flip – Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)
(Flip – Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

Embora aconteça fora da capital, a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) tem impacto direto no cenário cultural do estado. Ela colocou o Brasil e o Rio no mapa das grandes feiras literárias do mundo.


Fundada em 2003, a Festa é muito mais do que um simples evento. Durante cinco dias, a cidade colonial, no litoral sul do Rio, transforma-se em um dos destinos mais cobiçados por leitores do Brasil e do mundo. As ruas de pedra, os casarões históricos e o ritmo desacelerado dão o tom para um encontro profundo com o universo literário.


Ao misturar literatura, política, cultura afro-brasileira, indígena e debates sociais em sua programação, a Flip se tornou uma referência mundial de evento literário engajado e contemporâneo.


No festival, artistas e editoras expõem suas obras e participam de rodas de conversa. Também são montados espaços para a realização de mesas, lançamentos de livros, estandes de vendas, área infantil, bancas de artesanato e apresentações culturais.


A Flip também é conhecida por sua curadoria sofisticada. A cada ano, um autor brasileiro é homenageado e seu trabalho pauta não só a programação principal, como também as reflexões do evento. Em 2022, por exemplo, Maria Firmina dos Reis, considerada a primeira romancista negra do Brasil, foi celebrada e a festa mergulhou na ancestralidade negra e na denúncia do apagamento histórico de autoras brasileiras.


As conversas principais acontecem na Tenda dos Autores, com transmissão ao vivo para diversos pontos da cidade, mas a Flip vai mais além. Existe a Flipinha (voltada ao público infantil), a FlipZona (para jovens), a Off-Flip (com editoras independentes e saraus), os passeios literários, as intervenções artísticas e a presença vibrante da cultura caiçara e indígena.


Para 2025, em sintonia com o título de Capital Mundial do Livro, a Flip promete revisitar os 20 anos de trajetória e reforçar seu compromisso com a descolonização das narrativas. A ideia é trazer escritores de territórios invisibilizados e ampliar pontes com a literatura africana e latino-americana, além de incluir ainda mais os moradores locais na construção da festa.


A edição deste ano vai acontecer entre 30 de julho e 3 de agosto, retornando ao período tradicional do evento, após anos com a programação deslocada devido à pandemia. O autor homenageado desta vez é o poeta Paulo Leminski.

 

Flist – A literatura tomando as ladeiras de Santa Teresa
(Flist – Foto: divulgação)
(Flist – Foto: divulgação)

A Flist – Festa Literária de Santa Teresa nasceu pequena, mas cheia de alma. Criada em 2009 pelo Colégio Semente, no coração de um dos bairros mais artísticos do Rio, o evento cresceu pelas ladeiras de Santa Teresa com poesia, afeto e muita literatura infantil e juvenil. Seu diferencial é nítido: tudo é feito para aproximar o livro do cotidiano das crianças, das famílias e da comunidade.


Com atividades espalhadas pelas ruas e praças, a festa mistura contação de histórias, oficinas de ilustração, debates sobre literatura e educação, lançamentos de livros e apresentações artísticas. Tudo isso com um espírito leve e envolvente, como se o bairro inteiro se tornasse uma escola viva de encantamento literário.


O festival também valoriza os grandes nomes da literatura nacional voltada à infância. Já homenageou autores como Ana Maria Machado, Ziraldo, Ruth Rocha e Bartolomeu Campos de Queirós. Nos últimos anos, passou a incluir autoras negras, editoras independentes e escritores da periferia, ampliando seu horizonte.


A edição de 2025 já está sendo preparada com o cuidado de sempre, mas com uma dose extra de ambição: a Flist pretende ser uma ponte entre o morro e o asfalto, reunindo escolas públicas da cidade, bibliotecas populares e autores que dialogam diretamente com o cotidiano dos jovens das favelas.


Flup e outras festas literárias periféricas – a potência das margens
Foto: divulgação/Flup
Foto: divulgação/Flup

Na contramão dos eventos literários “institucionais”, nasceram, na última década, festas que dão luz a locais marginalizados. A mais conhecida delas é a Flup – Festa Literária das Periferias, criada em 2012 e já consagrada internacionalmente como uma das experiências mais inovadoras da literatura contemporânea brasileira.


O festival acontece em comunidades cariocas, como Vidigal, Cidade de Deus e Maré. O evento leva autores premiados para debater com moradores, promove oficinas de escrita criativa para jovens de escolas públicas, cria residências literárias e lança novos talentos. Um dos projetos mais marcantes é o “Poetas do Slam”, que já revelou nomes que hoje circulam por festivais no Brasil inteiro.


Mas a Flup não está sozinha. A cidade também conta com a FLA – Festa Literária do Alemão, a Flim – Festa Literária da Maré, a Flup – Parque União e tantas outras iniciativas autônomas, organizadas por bibliotecas comunitárias, coletivos de mulheres negras e movimentos culturais locais.


Esses eventos têm algo em comum: não pedem licença para entrar no circuito literário tradicional. Eles criam seu próprio circuito. Neles, a palavra escrita é celebrada como ferramenta de afirmação, denúncia e cura.


Em 2025, com o Rio no centro do mapa mundial da leitura, essas festas devem ganhar mais visibilidade e apoio. Mas os organizadores são categóricos: “não queremos ser apenas convidados, queremos decidir o cardápio”, como declara Renata Souza, articuladora cultural da Zona Norte.

 

Lançamentos em livrarias
Hélio De La Peña, Marcos Salles, Babi Cruz e Flora Cruz no lançamento do livro O Sambista Perfeito. (Foto: Júnior Azevedo)
Hélio De La Peña, Marcos Salles, Babi Cruz e Flora Cruz no lançamento do livro O Sambista Perfeito. (Foto: Júnior Azevedo)

Outros eventos que atraem os cariocas são os lançamentos de livros. Na última segunda-feira (07/07), ocorreu a apresentação de “O Sambista Perfeito”, a biografia de Arlindo Cruz. A cerimônia foi na Livraria da Travessa, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio, e contou com a presença de sambistas, de amigos e da família do artista, como a esposa Babi Cruz e a filha Flora Cruz.


Durante o evento, Marcos Salles, autor da obra, falou sobre a força do livro na sociedade. "É importante demais, né?! Porque vem aquela velha história de que o livro acabou, agora é só computador... e você vai na Bienal, tanto no Rio quanto em São Paulo, e está superlotado. Você não anda, é um monte de livro sendo vendido. Qual a explicação disso? O povo continua lendo, desde a criança até o jovem do TikTok, os coroas... todo mundo lê. O livro é muito melhor do que ler na tela, até faz menos mal para a vista."

(Foto: Júnior Azevedo)
(Foto: Júnior Azevedo)

Ele acredita que há poucas festas literárias e defende que a Bienal do Livro seja anual e não a cada dois anos. “Temos que fazer eventos literários em Madureira, no Leblon... Cultura tem que ter toda hora. Com mais editais, e com fomento do governo. Isso é essencial.”


Além disso, Salles nos revelou com exclusividade que está finalizando a biografia da sambista Jovelina Pérola Negra, do grupo Raça Brasileira, e que já começou as obras de Almir Guineto, Beto Sem Braço, Sombrinha, além de sua própria autobiografia. Sobre o livro de Arlindo Cruz, contou que nele os leitores vão encontrar tudo: da infância difícil à passagem pela Aeronáutica, os anos no grupo Fundo de Quintal, a carreira solo e vida pessoal. Eu não preciso de pesquisa, porque convivi com todos os personagens. Eu monto a narrativa conversando com quem viveu cada pedaço dessa história comigo.”


Ouça a entrevista completa:

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Babi Cruz, esposa de Arlindo, durante o lançamento falou emocionada. “A emoção (de lançar o livro) é uma gratificação a Deus, aos nossos orixás, por essa conquista de ratificar a imortalidade do Arlindo Cruz na literatura. Eu consegui fazer musical, transformar ele em enredo do Império Serrano, mas o mais importante foi ter tempo. Tivemos a chance de entregar esse livro com ele ainda perto da gente.” Babi é idealizadora do Instituto Arlindo Cruz e celebrou o fato do pré-lançamento ter ocorrido durante a Bienal, no ano em que o Rio é Capital Mundial do Livro. “Através da literatura, o legado do Arlindo fica preservado para as próximas gerações. É a sensação de dever cumprido.”


Ela também adiantou que, além do livro, já está em produção um documentário, que vai virar filme. Um novo musical também está em preparação. “Quero traduzir o livro para japonês, francês e inglês. O Arlindo é da música, do universo, não é só do samba nem do Brasil.”


Ouça a entrevista completa:

babi cruz

O escritor e humorista Hélio De La Peña também participou do evento e falou sobre a emoção de ter sido escolhido para escrever a orelha de O Sambista Perfeito.


“Fiquei muito honrado. O Arlindo tem muitos amigos, muita gente talentosa ao redor, e o Marcos (Salles) conhece todo mundo. De repente, ele me escolheu para estar na orelha desse livro”, contou Hélio. “E tem um simbolismo aí também, né?! A gente está falando de música... e ser a ‘orelha’ disso tudo é uma honra enorme”, brincou o humorista.


Para ele, a escolha do Rio como Capital Mundial do Livro é uma chance de romper estigmas e dar visibilidade à literatura brasileira. “A língua portuguesa ainda é muito marginalizada. Ela é pouco falada no resto do planeta. Se tem muita exposição do inglês, do espanhol, do francês e a nossa língua fica meio esquecida. Agora, o português do Brasil está sendo visto pelo mundo inteiro por conta desse título. Isso mostra que o Rio não é só samba e praia. É também o lugar das letras.”


O humorista aproveitou para ressaltar a importância dos eventos literários no fortalecimento da cultura carioca. “Tem gente que ainda acha que o carioca não lê. Mas vai na Bienal! É lotada. Aqui hoje, segunda-feira, livraria cheia, fila de gente com livro na mão. Isso mostra o quanto o livro importa para a gente.”


Engajado na promoção da leitura, o escritor contou que também é responsável por uma biblioteca comunitária no Morro da Babilônia, Zona Sul do Rio, a Biblioteca La Peña. O espaço, criado para democratizar o acesso à leitura, funciona de terça a sábado e conta com um acervo diverso, que vai de clássicos da literatura nacional a obras contemporâneas.


“Tem Rubem Fonseca, Nelson Rodrigues, Ruy Castro, até livros do Casseta. E agora vamos levar ‘O Sambista Perfeito’ também, que o Marcos autografou para mim. Assim que eu terminar de ler, vai direto para lá”, garantiu.


O espaço está localizado na Ladeira Ari Barroso, número 66, e pode ser encontrado no Instagram pelo perfil @bibliotecalapena. Além de empréstimo de livros, o espaço promove encontros com autores, rodas de leitura e outras atividades abertas à comunidade.


“É um lugar para mostrar que a leitura também é nossa. Que a favela lê, que o carioca lê, que a nossa cidade é feita de palavra, de poesia, de papel e de sonho.”


Ouça a entrevista completa:

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UM ANO PARA VIVER A LITERATURA NAS RUAS

A escolha do Rio como Capital Mundial do Livro prevê mais de mil atividades ao longo de 2025. A agenda inclui:

  • oficinas de leitura nas escolas municipais;

  • ampliação do Programa Bibliotecas do Amanhã;

  • criação de corredores literários em comunidades;

  • feiras de troca de livros em praças públicas;

  • instalações urbanas com trechos de poemas nas ruas.


Além disso, instituições como a Fundação Biblioteca Nacional, o Real Gabinete Português de Leitura, o Museu da Língua Portuguesa (com núcleo no Rio) e o Itaú Cultural devem entrar com programações especiais, valorizando a memória da língua e da escrita.


Faculdade de Comunicação Social | Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)

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