Capítulo 1 – Raízes literárias: o Rio Antigo na construção da Capital Mundial do Livro
- Beatriz Cardeal e Junior Azevedo
- 30 de nov. de 2024
- 9 min de leitura
Atualizado: 18 de jul.

Antes das bibliotecas e da capital do império, o Brasil era um território ultramarino de Portugal. Um território importantíssimo para a sobrevivência da Coroa portuguesa, sim, mas ainda uma colônia. E uma colônia com regras muito rígidas em comparação com os vizinhos latinos – tipografias foram instaladas a partir do século XVI nos territórios que hoje integram o México e o Peru, e o comércio de livros entre as colônias espanholas e os países europeus era incentivado com poucos ou nenhum tipo de imposto. Já no Brasil, a história é outra.
A produção e comercialização de livros e jornais locais era expressamente proibida. Até a importação era dificultada! Impossível o comércio com outros países além de Portugal, que controlava de perto quais obras poderiam entrar e circular no território. Se a intenção era manter o país alheio de ideias e correntes culturais que circulavam pela Europa, foi um controle meio que para inglês ver. Não impediu que os ideais iluministas e o republicanismo influenciassem a Inconfidência Mineira, por exemplo.
O que fugia do controle dos portugueses era o clima na Europa. Impossibilitados de conter o curso da história, viam de longe os impactos da queda do Antigo Regime e da Revolução Francesa no Velho Mundo… talvez esperançosos que não os afetariam. Em todo caso, enganaram-se. E em 1807, Napoleão marchava em direção às fronteiras portuguesas.
D. João VI não se enganou. Mobilizou o inexpressivo exército português para proteger Lisboa enquanto organizava a fuga, aquela que mudou os rumos da colônia. Dessa forma, o Brasil teve uma experiência nunca antes (e nem depois) vivida: ser promovida à capital do Império.
Chegada da família real ao Rio de Janeiro
Três séculos atrasada em comparação às colônias espanholas. De uma hora para outra, a Corte chegou e muito teve que ser feito para tentar equiparar o Rio de Janeiro às capitais europeias.
A nova sede do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves estava em transformação – de capitania hereditária a capital colonial. A história iniciou com a Corrida do Ouro: a capital foi transferida de Salvador para o Rio de Janeiro e, durante o ápice, no século XVIII, o dinheiro e o desenvolvimento cultural que se concentravam em Minas Gerais começou a invadir as terras cariocas. O barroco brasileiro, por exemplo, encontrou sua maior expressão artística em Minas Gerais naquele período, mas também esteve presente na capital.
Nada disso preparou o Rio de Janeiro para receber o título de capital do Império.
Um dos primeiros decretos de D. João VI no Brasil foi a criação da Imprensa Régia, com a finalidade de imprimir a legislação e os documentos diplomáticos das repartições reais. Era 13 de maio de 1808, quando três séculos de proibição foram extintos em um dia.
Outra mudança imediata é a fundação da instituição atualmente conhecida como Fundação Biblioteca Nacional. Originária da Real Biblioteca, foi trazida junto com a mudança da Coroa.
Repentinamente, os livros chegaram ao Brasil.

As origens da Biblioteca Nacional
Desde o século XV, a Coroa portuguesa manteve o costume iniciado por D. João III de abrigar livros no Paço Imperial. Nomeada como Real Biblioteca, foi passada de geração em geração entre os governantes portugueses até atingir o seu auge e a sua destruição, ambos nos anos 1700.
Em 1º de novembro de 1755, durante as celebrações do Dia de Todos os Santos, Lisboa foi atingida por um dos terremotos mais mortíferos registrados no Ocidente. O Sismo de 1755, como ficou conhecido, foi seguido por maremoto e múltiplos incêndios nos dias seguintes. Não havia formas de previsão e prevenção na época e a população lisboeta foi pega de surpresa. Toda a capital portuguesa foi reduzida a escombros, em especial o Paço Imperial. A sorte da Família Real é que estavam passando o dia em outra residência, se não a realeza portuguesa teria deixado de existir.
No entanto, o destino da Real Biblioteca não foi o mesmo. Três séculos de existência apagados em um dia. De volta à Lisboa, D. José I e o ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro marquês de Pombal, iniciaram imediatamente a reconstrução da cidade e da biblioteca.
A biblioteca era extremamente importante para Portugal. Afastado geograficamente do centro cultural europeu, a coleção era uma das maiores do continente e um dos poucos atrativos para a visita de estrangeiros. Restaurar a biblioteca representava a manutenção simbólica da relevância de Portugal na Europa. Mas a renovação não seria fácil. A nova coleção se originou da compra de acervos privados e ganhou destaque com doações incentivadas por conquistas de títulos ou isenção de dívidas.
A nova antiga biblioteca cruzou o oceano e encontrou no Brasil a sua morada final. Inaugurada em 29 de outubro de 1810, o decreto oficial instituía:
“nas catacumbas do Hospital do Carmo se erija e acomode a Real Biblioteca e instrumentos de física e matemática, fazendo-se à custa da Fazenda Real toda a despesa conducente ao arranjo e manutenção do referido estabelecimento”.
Biblioteca Nacional
No fértil solo brasileiro, a Real Biblioteca prosperou. Apesar da América Latina ter uma cadeia produtiva e comércio de livros, nunca antes houve a presença de tamanho acervo no Novo Mundo – comparável apenas à Biblioteca do Congresso nos Estados Unidos. Aberta ao público desde 1814, as novas aquisições de coleções e os lotes que ainda chegavam de Portugal obrigaram a expansão para outro prédio da rua Direita (hoje a rua Primeiro de Março).
Não continuamos colônia por muito tempo.
Em 1822, D. Pedro I proclamou a Independência e iniciou a história do Império do Brasil. O reconhecimento da independência do Brasil por parte de Portugal só aconteceu em 1825, após a assinatura do Tratado de Paz e Amizade entre os dois países. Ele previa o pagamento de indenização por todos os bens deixados pela Coroa portuguesa, principalmente a Real Biblioteca, que custou 800 contos de réis. Por ser um padrão monetário antigo, não há padrão de conversão para um sistema monetário atual, porém, tendo em vista que um conto de réis equivalia ao valor de um milhão de réis, a quantia paga somente pela biblioteca foi de 800 milhões de réis – valor considerado exorbitante para uma nova nação que começou a administração pública já com as contas no vermelho.
De nome nove, a Biblioteca Imperial e Pública inaugura a nova fase com um novo decreto: deve receber um exemplar de todas as obras, periódicos e volantes impressos no Brasil, os primórdios da Lei do Depósito Legal.
As décadas seguintes foram de muitas incorporações ao acervo e mudanças. Em 1858, mudou de endereço para rua da Lapa, atualmente a rua do Passeio, onde fica a Escola de Música da UFRJ, e em 1876 mudou o nome pela última vez, definitivamente se chamando Biblioteca Nacional.

Real Gabinete Português de Leitura
À época da Independência, nem todos os residentes do Brasil eram brasileiros. Quando a Corte regressou à Europa, muitos portugueses retornaram também, mas muitos continuaram no país, por diversos motivos – seja por exílio, seja por empregos, seja porque simplesmente preferiram ficar. A preferência pelo Brasil, contudo, não significava que apoiavam a emancipação e a busca pela identidade nacional.
Quando 43 emigrantes portugueses se reuniram na antiga rua Direita, n. 20, 15 anos depois da Independência, o primeiro movimento pela preservação da cultura portuguesa no Brasil surgiu. Em 14 de maio de 1937, foi fundado o Real Gabinete Português de Leitura, com o objetivo de dar a oportunidade aos portugueses no Rio de Janeiro ampliarem os seus conhecimentos, de acordo com o que era publicado em Portugal.
Talvez inspirados nas boutiques à lire francesas, lojas de empréstimo de livros, e impulsionados pela maçonaria, os gabinetes de leitura portugueses também se espalharam por São Paulo e posteriormente viraram bibliotecas municipais.
O projeto se expandia no Brasil enquanto Portugal se afundava em crises tanto econômica quanto social e política. Para resgatar os ânimos dos emigrantes e usando o pretexto das comemorações do tricentenário de morte do escritor Luís Camões, em 1880, os sócios adquirem um terreno na antiga rua Lampadosa, atual rua Luís de Camões, e iniciam as obras.

Na inauguração, o convidado especial para ser o orador, o escritor Ramalho Ortigão, pronunciou:
"E se um dia o nome de Portugal houver de desaparecer da carta política da Europa, esta Casa será ainda como a expressão monumental do cumprimento da profecia posta por Garrett na boca de Camões: ... não se acabe a Língua, o nome português na terra”.

Academia Brasileira de Letras (ABL)
O século XIX foi de grandes transformações para o Brasil. De colônia para sede do império português no início, a independência e estabilização do império brasileiro no meio e a Proclamação da República ao final. No âmbito cultural, essa linha do tempo representa o afastamento do jugo europeu e a busca por uma identidade nacional. Se nos outros casos, vimos exemplos do que o governo e os emigrantes portugueses fizeram para conquistar (ou manter) as suas essências culturais, finalmente chegou a hora dos brasileiros.
Motivados pelo desejo de consolidar e valorizar a língua portuguesa e a literatura brasileira, iniciou-se o movimento para a criar uma academia literária nacional. O poeta Afonso Celso Júnior e o jornalista e romancista Medeiros e Albuquerque – compositor do Hino à Proclamação da República – foram os primeiros a manifestarem interesse por essa ideia, mas os planos só saíram do papel por idealização do escritor Lúcio de Mendonça.
Em 15 de dezembro de 1896, na Travessa do Ouvidor, n. 31, foi realizada a primeira sessão preparatória e uma importante decisão foi tomada – Machado de Assis eleito presidente.
A partir desse momento, mais seis reuniões aconteceram com 30 nomes escolhidos: Araripe Júnior, Artur Azevedo, Graça Aranha, Guimarães Passos, Inglês de Sousa, Joaquim Nabuco, José Veríssimo, Lúcio de Mendonça, Machado de Assis, Medeiros e Albuquerque, Olavo Bilac, Pedro Rabelo, Rodrigo Otávio, Silva Ramos, Teixeira de Melo, Visconde de Taunay, Coelho Neto, Filinto de Almeida, José do Patrocínio, Luís Murat, Valentim Magalhães, Afonso Celso Júnior, Alberto de Oliveira, Alcindo Guanabara, Carlos de Laet, Garcia Redondo, Pereira da Silva, Rui Barbosa, Sílvio Romero e Urbano Duarte.

A inspiração veio da Academia Francesa. Uma das mais antigas instituições do país europeu, desde 1635, é formada por 40 membros conhecidos por “Imortais” e tem como função a regulamentação da gramática, ortografia e literatura francesa. Para seguir conforme a tradição, os brasileiros precisariam nomear mais 10 homens. Os eleitos foram: Aluísio Azevedo, Barão de Loreto, Clóvis Beviláqua, Domício da Gama, Eduardo Prado, Luís Guimarães Júnior, Magalhães de Azeredo, Oliveira Lima, Raimundo Correia e Salvador de Mendonça.
E então, sem endereço fixo, a Academia Brasileira de Letras realizou a sessão inaugural. 20 de julho de 1897 é a data em que 16 dentre os 40 se reuniram para anunciar que a língua e literatura brasileira seria preservada dali em diante.
O passado e o presente se encontram

A virada do século trouxe ainda mais relevância para essas instituições. Logo em 1910, na comemoração do seu centenário, a Biblioteca Nacional recebe o seu endereço final. Com capacidade para um milhão e meio de livros impressos – fora os manuscritos e estampas –, o edifício na praça Cinelândia abriga até os dias atuais o acervo da maior biblioteca da América Latina e uma das dez maiores do mundo, segundo a Unesco.
Desde a fundação, a Biblioteca Nacional é o maior centro de memória documental do Brasil. Com foco na preservação do acervo histórico, literário e científico do país, no século XX se consolidou como um espaço fundamental para pesquisadores, estudantes e o público em geral, promovendo exposições, publicações e acesso ao conhecimento.
Com as inovações tecnológicas no século XXI, a Biblioteca Nacional expandiu seu alcance por meio de recursos digitais, democratizando o acesso à cultura e ao patrimônio brasileiro não apenas no Brasil, mas globalmente. Além disso, atua como um espaço de promoção cultural brasileira através de bolsas, cursos, oficinas e premiações. Sua atuação também é importante na preservação da memória social frente às mudanças tecnológicas rápidas e às novas formas de consumo cultural.
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Em seguida, graças aos esforços diplomáticos do presidente Afrânio Peixoto e do embaixador francês em exercício no Brasil, em 1923, o governo francês doou o prédio do Pavilhão Francês usado na Exposição do Centenário da Independência do Brasil para ser a sede da Academia Brasileira de Letras. A réplica do Petit Trianon do Palácio de Versalhes recebeu em definitivo a instituição.
No Rio de Janeiro, que foi a capital do Brasil até 1960, a ABL consolidou seu papel como espaço de reflexão sobre o idioma português e promoveu ações que incentivaram a produção literária e cultural do Brasil. Os membros são escolhidos por votação entre seus pares e representam uma elite intelectual dedicada à preservação e ao avanço da cultura brasileira. Entre os nomes mais emblemáticos associados à instituição, estão Machado de Assis, Rui Barbosa, João Guimarães Rosa, Rachel de Queiroz e Cecília Meireles.
A trajetória da academia reflete o esforço constante de fortalecer uma identidade cultural brasileira forte e reconhecida internacionalmente, mantendo vivo o compromisso com a língua portuguesa e com o incentivo à literatura nacional. No século XXI, ela permanece sendo um símbolo de prestígio cultural, promovendo eventos literários, publicações e debates que fortalecem o patrimônio linguístico e literário do Brasil.
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O Real Gabinete Português de Leitura não teve grandes alterações estruturais. Com a sede finalizada em 1880, manteve o seu objetivo de reunir e preservar a literatura portuguesa, além de promover o intercâmbio cultural entre Portugal e Brasil. O Real Gabinete é possui a maior coleção de livros portugueses fora de Portugal, contendo cerca de 195 mil volumes. E, semelhante à Biblioteca Nacional, recebe um exemplar de cada obra publicada no país europeu. Essa riqueza patrimonial faz dele um tesouro para estudiosos da história colonial, da literatura lusófona e das relações culturais entre os dois países.
No século XXI, o Gabinete continua sendo uma instituição viva que promove atividades culturais diversas, como palestras, lançamentos de livros, exposições temporárias e programas educativos. Eleita pela revista Time como uma das dez bibliotecas mais bonitas do mundo, atrai muitos turistas durante todo o ano e é usada como locação para projetos audiovisuais diversos, como no videoclipe sub.ver.si.va da cantora Manu Gavassi.
Recebeu também o evento de lançamento de lançamento da marca do Rio de Janeiro como Capital Mundial do Livro.

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