Quando o algoritmo decide como devemos parecer
- Emilly Veiga e Lyandra Pralon
- 10 de jul.
- 7 min de leitura
Atualizado: 8 de out.

O Brasil está entre os países mais conectados do mundo. Segundo relatório produzido pela We Are Social e Meltwater (2024), os brasileiros passam, em média, nove horas e 13 minutos por dia diante de telas, e boa parte desse tempo se concentra nas redes sociais digitais. Entre elas, o TikTok ocupa uma posição de destaque, especialmente entre o público jovem.
É nessa plataforma que o corpo e o rosto deixam de ser apenas partes da identidade e passam a compor um conteúdo estético performado. Um rosto bem iluminado, uma maquiagem “natural”, uma rotina de skincare, em português “cuidados com a pele", registrada em silêncio, ao som de trend lo-fi, que consiste em músicas calmas e de som ambiente. A estética virou narrativa e também uma forma de validação social.
Segundo a psicóloga clínica Isabella Benevides, que atua com abordagem em psicanálise, esses padrões estéticos promovidos pelo TikTok podem parecer a princípio inofensivos, alguns até motivadores, mas podem ter impactos muito profundos na formação da identidade e na autoestima. “Essa fase da vida da adolescência é marcada por uma busca muito grande de pertencimento e de validação social. Então, quando a referência constante são corpos, rotinas e aparências superfiltradas, padronizadas e fora da realidade desses jovens, eles passam a se comparar de forma negativa e se sentem inadequados e insuficientes por não conseguirem corresponder àquelas expectativas.”
Ela explica que a exaltação de rotinas superprodutivas e de estéticas muito irreais gera uma pressão constante. “Esses jovens estão o tempo inteiro naquele TikTok, então estão sendo bombardeados com isso o tempo inteiro. Eles depois passam a acreditar que precisam ser muito disciplinados, saudáveis, dentro dos padrões estéticos que estão sendo reproduzidos ali, produtivos, e isso não condiz com a realidade da maioria dos jovens.”
Com vídeos curtos, linguagem acelerada e uma estética muito própria, a plataforma deixou de ser apenas um espaço de entretenimento para se tornar uma espécie de vitrine aspiracional. O que se vê ali não são apenas danças e dublagens: são rotinas, aparências, performances. Na rede, os vídeos curtos, rápidos e virais ajudam a criar tendências, principalmente no campo da estética, podendo virar um fenômeno em questão de segundos.
Em um feed em que o “antes e depois” viraliza, a pressão estética se reinventa, agora sob a linguagem do autocuidado.
Clean girl, glow up e o corpo como vídeo de 15 segundos

Uma das estéticas que se consolidaram na plataforma foi a clean girl, que viralizou em 2022 com referência em celebridades como Hailey Bieber e Bella Hadid. Com maquiagem leve, cabelo alinhado e roupas neutras, a tendência vende a ideia de bem-estar, saúde e autocuidado em uma versão aparentemente natural e espontânea. O estilo, que em português significa “garota limpa”, foi muito associado ao autocuidado e bem-estar, transmitindo uma imagem de “acordei assim”.
Apesar da aparência minimalista, a estética está longe de ser acessível a todas. A hashtag dominada por meninas brancas e de corpos padrões promove um ideal de beleza eurocêntrico e elitista, além de reforçar modelos estéticos e de vida que podem ser difíceis de alcançar. Além disso, o termo “garota limpa” implica a existência do contratipo “garota suja”, que coloca a real aparência natural (pele texturizada ou com acne), o uso de diferentes estilos de maquiagens e diferentes tipos de corpos e estilos de vida nessa categoria.
Outro fenômeno popular é o glow up, que significa “brilhar” ou “melhorar”, que propõe transformações físicas e comportamentais em nome da autoestima e das conquistas pessoais. O glow up envolve mudanças na rotina de cuidados com a pele, cabelo, maquiagem, estilo pessoal e até mesmo perda ou ganho de peso. Embora pareça inofensivo, o glow up impõe a ideia de que evoluir é, necessariamente, transformar-se fisicamente. O que está em jogo não é apenas a aparência, mas a promessa de aceitação, relacionamentos e sucesso desde que dentro de um padrão.
“Todas têm o mesmo rosto”

A padronização estética promovida por essas tendências vem afetando diretamente a forma como jovens mulheres percebem a si mesmas. A youtuber Júlia Leivas, que produz vídeos sobre estilo de vida e autoestima, resume esse sentimento: “É a mesma cara, o mesmo nariz, a mesma bochecha, o mesmo olho, a mesma boca, o mesmo maxilar, tudo exatamente igual. Não existe mais a beleza individual. E se você estiver fora daquilo, você é considerada como estranha. Às vezes você tá vendo foto dessas mulheres quando saem filmes e algumas coisas, você não sabe quem é quem”.
Para ela, a diferença em relação a décadas anteriores é evidente. “Fico vendo a Thais Araújo, Carolina Dieckmmann, Camila Pitanga, Ana Falaroza, Julia Roberts, entre tantas outras. Todas elas tinham uma beleza única, uma beleza harmônica. Elas tinham o rosto parecendo real, elas tinham aquela beleza única que era só delas. Aí você corta para os filmes de hoje. Todas as mulheres são exatamente iguais”, afirma em um de seus vídeos.
Leivas também aponta o impacto das redes sociais sobre sua autoestima: “Eu comecei a ter esses problemas absurdos de autoestima, principalmente quando veio a época da internet. [...] A gente começa a ver essas mulheres na internet, com o narizinho pontudinho, a bochechinha pequenininha. Tudo formato, assim, considerado perfeito. E aí você quer ser essas pessoas”.
A influenciadora cita ainda o artigo The Age of Instagram Face, que descreve um rosto idealizado com “pele sem poros, maçãs do rosto altas e bem carnudas, olhos de gato, cílios longos, nariz pequeno, elegante, lábios carnudos e exuberantes”. Para Júlia, essas exigências formam uma nova prisão estética: “Essas prisões não são como antigamente. Essas prisões são o que a gente tá vendo agora. É o preenchimento labial. É o botox adoidado. É a cirurgia estética que não acaba mais”.
Essa nova prisão tem origem, segundo ela, no uso de filtros e aplicativos que moldam esse ideal. “Se você parar para pensar em como o FaceTune mudou a história da humanidade, em que mulheres não conseguem postar uma foto sem usar o FaceTune, elas chegam no centro cirúrgico falando ‘eu quero ter exatamente esse rosto, quero ser essa pessoa’”.
O algoritmo que empurra um único ideal

A viralização dessas tendências não acontece por acaso. O algoritmo do TikTok funciona a partir da repetição de padrões: ao assistir, curtir ou comentar um conteúdo, a plataforma entende que o usuário deseja ver mais daquilo. Em pouco tempo, o feed passa a ser inundado com vídeos semelhantes, reforçando modelos estéticos e estilos de vida específicos.
Uma tendência que viraliza na plataforma geralmente parte de um influenciador, que testa novos produtos e técnicas. Esses vídeos viralizam rapidamente, principalmente se chamarem atenção do algoritmo da plataforma que, em questão de horas, transforma um assunto simples em uma trend global copiada por milhões de adolescentes. Ao consumir repetidamente esse tipo de conteúdo, o usuário é exposto a padrões quase inatingíveis, moldados por filtros, edição e influenciadores.
Um exemplo de viralização é a rotina da influenciadora Manu Cit, ex-estudante de medicina que ganhou fama ao mostrar seu dia a dia intenso de treinos, estudos e produtividade. A jovem viralizou devido ao questionamento e choque dos usuários com a quantidade de coisas que a influencer conseguia fazer durante seu dia. Desde acordar antes do sol nascer, treinos, corridas, estudos, assistir às aulas da faculdade até dormir em horários certos. A sensação de que seu dia tem mais horas do que o dos outros gerou fascínio e, para muitos, frustração. Internautas começaram a se questionar e se sentirem improdutivos por não conseguir manter um padrão de vida parecido com o de Manu.
A psicóloga Isabella Benevides reforça que isso pode gerar sentimentos de culpa por não estar fazendo o suficiente, insatisfação com a aparência e a rotina, além de um medo constante de ficar para trás. “Com o tempo, essas cobranças impactam muito negativamente a percepção da própria identidade e da realidade, e cria essa ideia de que só tem um tipo de vida para viver, que é essa vida ideal, e que é só essa que tem valor, só essa que é a correta.”
Quando a comparação vira sofrimento
Estudos recentes reforçam o impacto negativo do uso excessivo das redes sociais na saúde mental dos jovens. Pesquisa feita pelo periódico Middle East Current Psychiatry (MECP) com 620 estudantes universitários mostrou que 41% estão em risco de desenvolver transtornos alimentares, e 25% demonstram preocupação elevada com a forma corporal.

Dados da pesquisa indicam que os padrões de beleza nas redes sociais, aliados à pressão familiar, influenciam diretamente essa preocupação elevada.
A psicóloga Isabella Benevides comenta que a exposição constante está ligada ao aumento de ansiedade, depressão e transtornos alimentares entre os jovens. “Os transtornos alimentares muitas vezes são desencadeados por essa obsessão com as dietas e os corpos magros, que são megaprodutivos por essas tendências. Esses quadros, às vezes, se desenvolvem sem ser extremamente perceptíveis e sendo confundidos com tentativa saudável de melhorar a vida”.
Isabella ainda chama a atenção para sinais de alerta que costumam passar despercebidos, como isolamento social, baixa autoestima, obsessão com corpo e alimentação, mudanças bruscas de comportamento e dificuldade em manter uma rotina.
“Sinais de alerta, a gente tem vários. O problema é que eles são muito silenciosos e eles se confundem muito com coisas que podem parecer saudáveis.”
Paralelamente, o levantamento do Porto Digital revela que nove em cada 10 brasileiros acreditam que os jovens não têm apoio emocional e social, e 70% defendem a presença de psicólogos nas escolas para melhorar esse cenário.

De acordo com Isabella, é possível minimizar os efeitos dessas tendências com o apoio de uma rede que envolva a família e a escola, criando um ambiente em que o jovem se sinta acolhido e valorizado.
“A promoção de conversas sobre padrões de beleza, identidade e realidade, reforça a autoestima com bases em valores internos, não só em aparência, então através da personalidade dessa pessoa, por exemplo. Isso estimula conexões reais de diversidade, e vai ter uma diversidade de referências que não é aquilo ali moldado pelo TikTok”, explica a psicóloga.
Ela destaca ainda que, ao se tornar necessário o apoio psicológico, é importante reconhecer essa necessidade e buscar profissionais capacitados.
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