O Brasil que não brinca em serviço… só finge
- Ana Julia Silveira, Carlos Cavalcante e Diego Figalva
- 14 de jul.
- 8 min de leitura
Atualizado: 16 de jul.
De brincadeira à ameaça à ordem: como bonecas reborn viraram alvo de políticos em todo o país

Em meio a um país que enfrenta uma crise humanitária, com milhões em situação de fome, desemprego e insegurança ambiental, parlamentares de pelo menos 14 estados brasileiros e do Congresso Nacional apresentaram mais de 40 projetos de lei voltados a um tema, no mínimo, curioso: os bebês reborn – bonecas hiper-realistas que imitam recém-nascidos.
Na mira do Legislativo, o que antes era um nicho artístico e terapêutico passou a ser tratado como uma possível “ameaça pública”, com propostas que preveem multas para quem utilizar as bonecas para acessar serviços públicos ou obter benefícios indevidos. Para entender a dimensão do fenômeno, investigamos os sites de todas as assembleias legislativas estaduais e do Congresso Nacional entre 12 e 17 de junho. A partir desse levantamento, identificamos os projetos em tramitação voltados à temática reborn – propostas que foram encerradas antes desse período ou apresentadas após esse intervalo podem não estar contempladas neste mapeamento.
A mobilização em torno das bonecas revela uma disputa política que ultrapassa o universo dos brinquedos e expõe tensões sobre prioridades governamentais, uso de recursos públicos e o controle simbólico sobre comportamentos frequentemente associados às mulheres. Enquanto grandes demandas sociais seguem urgentes e sem resposta, a atenção dedicada a esse tema levanta questionamentos sobre o real foco dos legisladores em 2025.
Do renascimento ao campo de batalha digital
A arte reborn surgiu no pós-Segunda Guerra Mundial, na Europa, quando mães começaram a reconstruir bonecas a partir dos destroços deixados pelo conflito – um gesto simbólico de renascimento, daí o nome reborn (“renascido”, em inglês). Décadas depois, a prática evoluiu para um refinado trabalho artesanal com moldes realistas, pintura em camadas e cabelo implantado fio a fio.
Hoje, o reborn se consolidou como um mercado global. São bonecas que podem ultrapassar os R$8 mil, buscadas por colecionadores, artistas e, claro, por crianças. No TikTok, os vídeos com as hashtags #bebêreborn, #reborn e #rebornsoftiktok já passam de um milhão de publicações. O conteúdo vai de tutoriais a encenações de “rotinas maternas”, alimentando uma base engajada – e cada vez mais controversa.
Foi justamente o conteúdo das redes que transformou as bonecas reborn em alvo do Legislativo. Tudo começou com um post viral no X (antigo Twitter): uma usuária contou que foi chamada para uma entrevista de babá e se deparou com um bebê reborn. Segundo ela, a suposta mãe dizia que precisava com urgência de uma babá.

A publicação, feita em tom de indignação, ultrapassou seis milhões de visualizações e teve mais de sete mil reposts. Mas era mentira. A própria autora voltou atrás nos comentários, admitindo que tudo havia sido uma invenção. Em pouco tempo, começaram a circular novos relatos – também sem comprovação – de reborns em hospitais, escolas e até em disputas judiciais. Boa parte das “provas” eram vídeos de encenação produzidos por influenciadores, como parte de uma tendência chamada roleplay, em que criadores simulam rotinas maternas com bonecas.
Mas, na lógica das redes, não importa se é verdade: se viraliza, vira pauta. E dessa vez, virou projeto de lei. O desconforto causado por vídeos encenados, aliado à onda de desinformação, ultrapassou o universo digital e encontrou o discurso político. O caso de um homem que agrediu um bebê real por acreditar estar diante de uma boneca mostra como a histeria coletiva pode escalar para a violência. Nesse clima, os reborns deixaram de ser apenas bonecas e se tornaram símbolo de um novo front legislativo.
Boneca não vota, mas pauta
Dos 44 projetos de lei apresentados sobre os bebês ultra realistas, metade foca diretamente no uso ou atendimento em espaços públicos e privados – um dado que revela não só o recorte específico do debate político, mas também a ênfase em medidas punitivas. A distribuição dessas propostas pode ser vista no gráfico abaixo.

Um dos exemplos mais radicais vem de Santa Catarina, onde está em tramitação um projeto que propõe a proibição total de venda, uso e circulação dos bonecos reborn. A proposta prevê sanções administrativas e até um programa de saúde mental para quem fosse “afetado” pelas bonecas. Diante disso, fica a pergunta: será que esse tema realmente representa um problema relevante para a sociedade hoje?
Para João Marcos Escano, doutor em ciência política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a resposta está menos na presença real dessas mães e mais no potencial simbólico da figura da mãe reborn. “Isso é uma pauta que engaja muito. A rede social, o eleitorado, eles trabalham com mobilização de público. A direita precisa identificar essas pautas e se posicionar em bloco para passar aos seus eleitores como pensar sobre o assunto”.
Segundo o cientista político, esse tipo de projeto funciona como uma forma de demarcar território ideológico e criar inimigos simbólicos. “A narrativa que se constrói é a de que a população estaria perdendo espaço ou direitos para algo absurdo, como mães de bonecas. Os deputados de direita estão mostrando para o eleitor que, se não tem atendimento em um hospital ou em um posto de saúde, é porque alguém com bebê reborn está tirando sua vaga. Mas cadê um estudo sobre isso? Um dado que mostre a parcela da população que é pai ou mãe reborn?”
O cenário ganha ainda mais nitidez ao se observar a autoria das propostas: quase metade (40%) parte de parlamentares do Partido Liberal (PL), seguido por União e MDB (ambos com 11%). A ausência de projetos vindos de partidos popularmente conhecidos como de esquerda escancara a condução política do tema por setores conservadores.

Ao transformar um fenômeno de nicho em ameaça coletiva, os projetos reforçam um senso de urgência e indignação que movimenta a base mais conservadora – mesmo que, na prática, não haja evidências concretas de que a questão tenha impacto real nos serviços públicos.
Cortina de fumaça e uma nova guerra cultural
Em um país com problemas muito mais urgentes, o avanço de projetos sobre bonecas reborn revela uma tendência preocupante: a priorização de pautas morais com forte apelo simbólico em detrimento de demandas concretas. A rapidez com que esse tema ganhou espaço no Legislativo demonstra a força de uma agenda que, embora sem base factual, se ancora no moralismo e na desinformação.
Esse movimento, no entanto, não acontece de forma homogênea pelo país: mais da metade das propostas se concentram apenas nas regiões Sudeste e Nordeste. Já a região Norte praticamente não aparece no mapa legislativo da “cruzada contra os reborns”, com apenas um projeto apresentado – um indicativo de onde essas pautas simbólicas encontram mais força política.

João Marcos Escano aponta que essa mobilização não é casual. “É uma cortina de fumaça, mas também um posicionamento estratégico para 2026. Ao se esconder atrás dessa pauta, os parlamentares desviam a discussão de uma série de problemas reais”, analisa.
A perseguição à arte reborn e aos seus consumidores escancara o risco da escalada de uma nova frente na guerra cultural. Ao transformar em vilão o público que constrói práticas de maternagem simbólica por meio das bonecas, dá-se início à criminalização de afetos e costumes que, embora minoritários, não representam qualquer ameaça coletiva. “Tudo se transforma numa guerra cultural – essa é uma das principais armas de mobilização da extrema direita”, completa Escano. “Por outro lado, vejo pouco risco direto à população em geral, porque, demograficamente, temos poucos dados sobre quem consome bebês reborn”.
Apesar da ausência de estatísticas oficiais, é perceptível que a prática está majoritariamente ligada ao universo feminino. Seja por sua relação com o cuidado, com o afeto ou com estéticas tradicionalmente atribuídas às mulheres, o reborn se torna um alvo fácil de julgamentos morais. E quando esse comportamento passa a ser politicamente questionado ou até legislado, expõe-se mais uma vez o peso do controle simbólico sobre os interesses e expressões femininas.
A mulher como alvo… mais uma vez
Diante da exposição e ridicularização que mulheres que colecionam ou vendem os famosos bebês reborns têm sofrido, um fenômeno que está bem presente no nosso cotidiano acaba vindo à tona mais uma vez: a permanência do machismo estrutural na maneira como a sociedade julga e deslegitima os interesses femininos.
O machismo estrutural é um sistema de crenças, práticas e valores que atravessa instituições como a mídia, a política, a família e o mercado de trabalho, sustentando a ideia de que o masculino é superior ao feminino. No Brasil, os efeitos desse sistema são visíveis em diversas esferas: as mulheres representam apenas 18% do Congresso Nacional atualmente, sendo que, em 2025, o país alcançou a maior bancada da história, com 594 congressistas. Desse total, apenas 107 são mulheres.
No caso das colecionadoras de bebês reborn, toda a hostilidade que elas enfrentam nas redes sociais digitais revela como o machismo atua também no campo simbólico: desvalorizando o afeto, o cuidado e qualquer forma de expressão considerada “feminina demais”. O apego emocional que essas mulheres demonstram pelas bonecas costuma ser visto como sinal de carência, desequilíbrio ou imaturidade. A escolha de um hobby voltado para o cuidado acaba sendo automaticamente ridicularizada, enquanto interesses tradicionalmente masculinos, como colecionar miniaturas de carros ou investir horas em videogames, raramente são questionados.

Luciane Rodrigues, 54 anos, é artista reborn desde 2011 e não entende o porquê de julgarem colecionadoras de bebês reborn, já que é uma coleção como qualquer outra: “Quem tem bebê reborn está apenas colecionando, assim como outras pessoas colecionam outras coisas, assim como homens colecionam carrinhos, assim como colecionam cartas, bonecos de Harry Potter, livros, quadros. Isso é uma coleção”.
Esse padrão de julgamento está ligado à infantilização dos interesses femininos. Quando uma mulher adulta expressa afeto por uma boneca, ainda que em um contexto artístico ou terapêutico, ela é reduzida à condição de “criança grande” ou “louca”. Não se trata apenas de preconceito contra um hobby, mas da negação de que o feminino, quando não se encaixa nas normas sociais, possa ser vivido com dignidade e legitimidade. Esse mesmo mecanismo atinge, por exemplo, mulheres que escolhem não ter filhos, que adotam estilos alternativos ou que fogem dos papéis tradicionais de esposa e mãe.
Luciane afirma que sente muito preconceito por parte das pessoas que não estão inseridas no universo reborn: “Alguns olham torto, achando que estamos criando (o boneco) como se fosse filho, que somos malucas, mas na realidade não é nada disso. Eu, por exemplo, encaro os bebês reborn como uma arte, como um trabalho bonito, uma perfeição”.

A hostilidade on-line que muitas dessas mulheres enfrentam também é um indicativo da cultura de ódio contra o feminino nas redes. Dados do SaferNet Brasil mostram que as denúncias de crimes de ódio contra mulheres na internet cresceram de 961, em 2017, para mais de 28 mil em 2022 – um aumento de quase 30 vezes. O ambiente digital, que deveria funcionar como espaço de liberdade e troca, muitas vezes se transforma em palco de vigilância moral, reforçando estereótipos e punindo comportamentos que escapam ao padrão.
No fim das contas, esse tipo de ataque não é apenas simbólico. Em um país onde faltam políticas públicas básicas, sobra energia para legislar sobre o que viraliza. Alimentada por fake news, indignações performáticas e moralismos seletivos, a política escolhe alvos simbólicos e, mais uma vez, mira no que é feminino, afetivo e fora da norma. A pergunta que fica não é só sobre o lugar das bonecas, mas sobre o rumo das prioridades: quem está brincando de fazer política enquanto a realidade exige seriedade?
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