Lei de 2015 avança em direitos celetistas para as domésticas, mas deixa brechas à informalidade
- Yasmin Cavalcanti e Jullyene Gomes
- 14 de jan.
- 8 min de leitura
Atualizado: 19 de jul.
Em 1996, com apenas seis anos de idade, Maria do Socorro Martins da Silva, hoje com 64 anos, deixou Bom Jardim, Pernambuco, em direção ao Rio de Janeiro. Acompanhada de sua irmã mais velha, Maria das Neves, as duas buscavam melhores oportunidades de trabalho. Desde muito jovens, tiveram que contribuir para o sustento da família na fazenda, com seus outros 14 irmãos. A mãe, Maria das Dores, não teve outra opção senão tirar as crianças da escola para garantir a sobrevivência familiar. Já aqui no Rio, depois de dormirem na rua e até pularem muros de colégio em Botafogo para se protegerem, começaram a ser exploradas no serviço doméstico.
O acolhimento da família italiana, que parecia ter como objetivo tirar as duas da rua, era na verdade um meio para o trabalho infantil, durando nove anos. Maria passou mais de 30 anos nessa categoria e enfrenta, hoje, dificuldades para se aposentar, pois, até recentemente, não era considerada trabalhadora formalmente. "Comecei a trabalhar com eles acreditando na promessa de que seria tratada como filha, mas, com o tempo, ficou claro que não queriam pagar pelo meu trabalho, alegando que já me davam comida e moradia. Também queria estudar, mas eles não permitiram. Durante esses oito anos, acabei achando que aquele tratamento era normal, como se eu lhes devesse isso por terem me tirado das ruas", conta Maria do Socorro.
A situação do “como se fosse da família” já foi até exibida nas telas do cinema com o filme Que horas ela volta? (2015, 112 min). O longa é dirigido por Anna Muylaert tendo a atriz Regina Casé como protagonista. A Val, personagem de Regina, é uma empregada doméstica também pernambucana que trabalha em São Paulo. Apesar de ser considerada "fundamental" para os patrões, ela vive em um pequeno quartinho de empregada, é excluída das refeições familiares e não tem acesso à piscina.
Essa realidade não é nova e está presente mesmo em alguns clássicos da sociologia brasileira, como Casa-Grande e Senzala (1933), livro de Gilberto Freyre que retrata a herança colonial na formação da sociedade brasileira, dentre elas o quartinho da empregada e a entrada de serviço. Outra herança que poderia ser citada é o "jeitinho" descrito por Sérgio Buarque de Holanda em seu livro Raízes do Brasil (1936) e, mais tarde, pelo sociólogo Roberto DaMatta. Essa atitude do brasileiro de querer se dar bem e tirar vantagem de outras pessoas de uma forma que não parece abuso, de forma corrupta e ao mesmo tempo amigável. Nesse caso, para deixar de lado direitos básicos trabalhistas, já que a vítima seria considerada parte da família.
O que mudou ao longo dos anos?
A aprovação da PEC das domésticas completará 10 anos em junho deste ano. O projeto, proposto em 2013 e aprovado em 2015 pela então presidente Dilma Rousseff (PT), assegurou às trabalhadoras domésticas direitos como salário mínimo, décimo terceiro, seguro-desemprego, FGTS, jornada de oito horas, férias, horas extras, seguros, licença maternidade e aposentadoria. Até a aprovação da lei complementar, a categoria não possuía a proteção por lei garantida pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Três anos após a regulamentação, o número de trabalhadoras domésticas com carteira assinada aumentou para 33,3%, conforme dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). No entanto, atualmente, apenas 25% possuem carteira assinada, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Isso significa que três em cada quatro trabalhadoras ainda atuam sem formalização. Esse cenário impulsionou o crescimento do trabalho como diarista, em que as profissionais negociam o valor da diária, geralmente atuando até duas vezes por semana em cada lar, com pagamento por dia trabalhado.
Essa é a realidade de Maria José Oliveira, de 56 anos, que deixou o regime de CLT para trabalhar como diarista. A recusa de alguns patrões em pagar os direitos e a diminuição do pagamento total no fim do mês foram alguns dos fatos que pesaram na decisão. “As patroas mandavam os empregados embora porque não queriam pagar tudo, décimo terceiro, férias, fundo de garantia etc. Então saí e voltei para trabalhar como diarista, porque como diarista ganha mais”, completou.
Dercylete Lisboa, auditora fiscal do trabalho desde 1999, mestre em Direito e professora de Direito do Trabalho e Direitos Humanos, analisa os progressos da Lei de 2015 e o que ainda há para ser feito. A auditora, que também chefia a Coordenação Nacional de Combate à Discriminação e Promoção da Igualdade de Oportunidades no Trabalho (Conaigualdade) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), comenta o fato de a PEC ter deixado brechas para a informalidade ao exigir uma quantidade mínima de dias trabalhados por semana para a adequação como CLT.
“Eu acho que é sempre importante a gente celebrar as vitórias. O nosso sonho de mundo ideal teria sido a inexistência do parágrafo único do artigo 7º da Constituição, no sentido de já desde 1988 trabalhadores urbanos, rurais e domésticos, ou simplesmente trabalhadores, terem exatamente os mesmos direitos. Mas o parágrafo estava lá e nós temos que celebrar que pelo menos aquilo ali foi assegurado em 1988. Com a Emenda Constitucional 72 de 2013, ampliaram-se outros direitos como a questão da limitação da jornada de trabalho, mas a sua regulamentação, apenas em 2015, pela Lei Complementar 150, demonstra muito claramente uma discriminação, uma diferenciação injustificável com o trabalho doméstico. É a limitação para que haja todos esses direitos, que dependam da periodicidade da prestação de serviço”, cita a auditora ao se referir à quantidade mínima de três dias ou mais trabalhados para a assinatura obrigatória da carteira.

Com uma quantidade inferior a três dias na semana trabalhados em uma mesma casa, a legislação atual não obriga empregadores a assinar a carteira de suas empregadas domésticas, permitindo o regime autônomo conhecido como diarista. Dercylete chama atenção, no entanto, para o fato de que a lei não exclui a possibilidade de ainda assim se assinar a carteira e garantir direitos celetistas a essa categoria. Outro ponto importante, na visão da auditora, é que o empregador não pode compactuar com jornadas excessivas de trabalho diário.
Interseccionalidade nos números
Dados do IBGE de 2022 mostram que o Brasil tem quase seis milhões de trabalhadores domésticos, das quais 66% são mulheres pretas e pardas que ganham 20% a menos que mulheres brancas, as quais correspondem a 25%. Esse número de trabalhadores passa por países como Finlândia, Dinamarca e Noruega. Além disso, a maioria está acima dos 40 anos e tem renda média inferior a um salário mínimo, segundo o Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas (Dieese), em matéria publicada em 27 de abril de 2022. A data marca o dia de Santa Zita, a padroeira das domésticas.
A violência não está apenas nos números. Em 1º de fevereiro de 2022, em Campo Bom, na região metropolitana de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, uma mulher de 55 anos com deficiência cognitiva foi resgatada em condições análogas à escravidão na casa em que trabalhava por 40 anos. Ela sofreu violência física, moral e psicológica por parte de seus empregadores. A justiça bloqueou os bens da família, que chegou a negar a convivência da vítima dentro de sua casa. Após a violência, a mulher foi encaminhada para uma instituição que acolhe pessoas com deficiência.
Uma das maiores dificuldades enfrentadas por trabalhadores domésticos é comprovar o vínculo empregatício na hora de se aposentar. Embora a lei determine que o recolhimento do INSS Patronal, referente à contribuição previdenciária, seja uma obrigação do empregador, a realidade é mais complexa. Caso o empregador não tenha feito o recolhimento, a legislação prevê que o trabalhador possa comprovar o exercício da atividade laboral, independentemente da contribuição ter sido realizada, já que a falta não é do trabalhador, mas do empregador. Assim, bastaria apresentar provas suficientes para que o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e a Procuradoria da Fazenda responsabilizem o empregador e cobrem os valores devidos. No entanto, na prática, essa solução encontra resistências.
“Isso em tese é lindo, isso em tese é de compreensão fácil, mas isso não é o que acontece na prática, em razão da resistência do INSS, de reconhecimento dessas atividades, muitas vezes especialmente no caso do empregado doméstico, que fica sujeito a provas meramente testemunhais”, cita Dercylete.
Covid-19
As domésticas foram uma das classes trabalhadoras mais afetadas durante a pandemia, escancarando uma profunda desigualdade social. A primeira morte por covid-19 no Rio foi de uma trabalhadora doméstica. A vítima, Cleonice Gonçalves, de 63 anos, contraiu a infecção de sua empregadora no Leblon, que havia passado férias na Itália e não a dispensou do trabalho.
Estados como Pernambuco, Maranhão, Pará e Rio Grande do Sul, colocaram o serviço como essencial e indispensável. E isso aconteceu mesmo com o Ministério Público do Trabalho garantindo que elas fossem dispensadas com remuneração. O período foi marcado, também, pelo aumento generalizado de demissões para cortar gastos.
Para a coordenadora geral da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), Luiza Batista (de Pernambuco – Recife), além das demissões, a pandemia trouxe insegurança às trabalhadoras em relação à própria doença, já que muitas não tiveram a opção de fazer isolamento social ou foram requeridas a ficarem na casa dos patrões. Em entrevista à Agência Brasil, a coordenadora afirma que “não era preocupação com a vida das trabalhadoras, era com o bem-estar e servidão que eles queriam, prova disso é que uma das primeiras mortes no Brasil foi de uma trabalhadora doméstica no Rio de Janeiro”.
Segundo ela, a Fetranad fez diversas campanhas durante a pandemia, como a que pedia que os empregadores deixassem a funcionária em casa com o salário pago. Apenas alguns empregadores fizeram isso em meio a milhares de trabalhadoras passando por uma situação crítica de insegurança financeira e alimentar.
“Na hora de readequar o orçamento, quem primeiro é excluída do orçamento é a trabalhadora doméstica. Quando ela fica sem renda, aceita fazer as tarefas mais pesadas daquela casa em dois dias na semana recebendo por diária; porque ela está desempregada, não tem outra fonte. Isso torna uma situação favorável para que as leis não sejam respeitadas”, afirma Luiza.
A Fenatrad é uma associação formada por 22 sindicatos e mais uma associação. Ela representa uma categoria formada por, aproximadamente, sete milhões de trabalhadores domésticos. As organizações filiadas à federação estão presentes em treze estados brasileiros: Acre, Bahia, Espírito Santo, Maranhão, Paraíba, Paraná, Piauí, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e Sergipe. A organização é mais uma daquelas que lutam para que o trabalho doméstico tenha os seus direitos assegurados, como o de qualquer outro trabalhador.
Laudelina: exemplo de força

Outra dessas histórias de luta por igualdade no trabalho doméstico é a de Laudelina Campos Melo. Nascida em Minas Gerais, começou a trabalhar aos sete anos e, na década de 1930, fundou a primeira associação de trabalhadores domésticos em Santos, São Paulo. A iniciativa foi o embrião da atual Fenatrad e marcou a inclusão das mulheres negras no direito à sindicalização. Em 1988, com a promulgação da nova Constituição, a associação liderada por Laudelina conquistou status de sindicato, consolidando seu papel na defesa da categoria.
Apesar das conquistas legais, muitas trabalhadoras domésticas, principalmente mulheres, ainda enfrentam dificuldades para que seus direitos sejam reconhecidos na prática. Elas são as pessoas que facilitam o dia a dia de quem não daria conta das tarefas de casa e não devem ser reconhecidas simplesmente como um objeto que pode ser removido em uma crise.
Publicado por: Raphael Lisboa
.png)




