Fim da linha: os trilhos da crise que marcam encerramento da era SuperVia no Rio
- Gabriel Machado e Matheus Rogers
- há 3 dias
- 4 min de leitura
Legado iniciado em 1998 pela empresa deixa marcas negativas e cidadãos insatisfeitos

Após 27 anos de uma concessão que prometia modernizar o transporte ferroviário do Rio de Janeiro, a SuperVia entrega um sistema à beira do colapso. A empresa, que encerra suas atividades em novembro de 2025, deixa como legado uma rede mais lenta, mais vazia e significativamente mais degradada do que a herdada em 1998. A trajetória de declínio não é apenas uma percepção dos passageiros, mas está documentada em números oficiais da Agetransp, agência reguladora dos transportes estaduais, que revelam uma crise financeira, operacional e de confiança sem precedentes.
O colapso financeiro foi gradual e inevitável. Enquanto a receita real com tarifas estagnou – saindo de R$ 564 milhões em 2015 para R$ 567 milhões em 2023, em valores nominais, uma queda brutal, se considerada a inflação do período –, as despesas explodiram. Os custos com manutenção, por exemplo, saltaram 310% no mesmo intervalo, de R$ 9,5 milhões para R$ 38,8 milhões, indicando que a empresa gastava cada vez mais apenas para corrigir falhas emergenciais em uma infraestrutura que ruiu. A energia elétrica ficou 61% mais cara, e a depreciação da frota envelhecida aumentou 130%. Esse desequilíbrio foi a sentença de morte financeira, culminando no pedido de recuperação judicial em 2023.
Para o passageiro, a crise se traduziu em uma contradição dolorosa: pagar mais por um serviço pior. A famosa "tarifa social" de R$ 5,00, mantida por decretos estaduais entre 2021 e 2025, mascarava um custo real que chegou a R$ 7,60. O abismo era coberto por subsídios públicos, um remendo insustentável diante da fuga em massa de usuários. O ápice do transporte havia sido em 2016, com 181 milhões de passageiros. Em 2023, esse número despencou para 86,6 milhões – o mesmo patamar de 1998. A SuperVia, em outras palavras, conseguiu regredir três décadas em apenas sete anos.
Quem permaneceu fiel aos trilhos pagou um preço alto em tempo e paciência. As viagens alongaram-se de forma alarmante. No ramal Japeri, o tempo médio de percurso aumentou de 95 minutos em 2019 para 111 minutos em 2023. No Santa Cruz, o crescimento foi similar, de 91 para 108 minutos. Esses minutos roubados do dia a dia foram consequência direta de uma via férrea doente. Em alguns meses de 2023 e 2024, até 7,4 quilômetros de trilhos apresentaram problemas que ameaçavam a segurança do tráfego, com os chamados "bolsões de lama" – fruto de drenagem precária – chegando a atingir 15 quilômetros no ramal Santa Cruz.
As estações tornaram-se espelhos do abandono. A disponibilidade de escadas rolantes, essenciais para o conforto e a acessibilidade, entrou em colapso: de 78% funcionando em 2019 para apenas 40% em 2024. Os elevadores, vitais para idosos e pessoas com deficiência, também viram sua operação minguar, caindo de 92% em 2018 para 76% em 2023.
O ano de 2023 foi o retrato do caos operacional, com a SuperVia registrando a cifra assombrosa de 4.137 ocorrências. Para se ter ideia da escalada, em 2019, esse número era 304. O sistema de sinalização, nervo central da operação, simplesmente desmoronou: as avarias saltaram de oito casos para 2.385 no período. As falhas na via permanente aumentaram 2.650%, e os incidentes de segurança pública, que incluem invasões e vandalismo, multiplicaram-se por nove.
Além das falhas técnicas, a operação foi marcada por tragédias humanas. Segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), entre 2011 e 2020, 409 pessoas morreram em atropelamentos nos trilhos da SuperVia. Apenas em 2017, foram 66 mortes. As vítimas tinham rosto: 80,9% eram homens e 69,7% eram pessoas negras. Muitos desses acidentes estavam ligados a problemas de infraestrutura, como o vão excessivo entre o trem e a plataforma – risco que ceifou a vida da estudante Joana Bonifácio, de 19 anos, na estação Coelho da Rocha nesse mesmo ano. A violência também se manifestou no aumento do vandalismo, que, de acordo com a própria SuperVia, cresceu 650% entre os primeiros quadrimestres de 2023 e 2024, saltando de 187 para 1.241 casos. Cada uma dessas ocorrências significou um trem parado, uma viagem interrompida, uma vida atrasada.
Os relatos dos passageiros compõem um doloroso retrato do dia a dia sobre os trilhos. Carlos Alberto Nascimento Araujo, 71 anos, descreve algumas situações que já passou nos trens desde o início da “era SuperVia”. “As tarifas eram mais baratas, é verdade, mas a estrutura era mais precária”, aponta ele. “Os trens eram mais fechados, não tinha ar-condicionado, faziam mais barulhos ao se locomover…”, enfatiza Carlos Alberto ao ser questionado sobre o estado dos trens. “Confesso que existe uma grande diferença em relação a conforto, principalmente nas áreas mais próximas da estação da Central, mas a infraestrutura e segurança parecem que pioraram. Antigamente, eu não me preocupava em ter carteira roubada no trem ou na estação, mas hoje eu preciso sempre ficar atento ao mexer no celular durante a viagem”.
Ele também ponderou a questão das escadas rolantes e elevadores nas estações: “Mesmo sendo idoso, graças a Deus não tenho problemas de locomoção, mas já presenciei diversas pessoas com dificuldade em acessar as estações por não ter escadas rolantes e elevadores funcionando. Já vi muitas quedas e também já ajudei pessoas a entrar nos trens. É muito difícil utilizar esse serviço de má qualidade. Eu pago meus impostos para que eles sejam investidos no meu bem-estar e no das outras pessoas, mas não vejo esse dinheiro ajudando a população”.
A próxima concessionária herdará legados e desafios monumentais deixados pela SuperVia e pelo Estado. O novo operador encontrará uma infraestrutura física e uma relação de confiança com o usuário igualmente deterioradas. O modelo de negócio futuro terá que responder a perguntas que a concessão anterior não soube resolver: como equilibrar tarifas acessíveis com investimentos robustos em manutenção preventiva? Como reconstruir a confiança de um público que, em milhões, já buscou outras alternativas de transporte e abandonou os trens? As respostas a essas questões definirão se os trilhos do Rio de Janeiro seguirão como um símbolo de abandono ou se, finalmente, se tornarão o eixo de mobilidade que a metrópole merece.
Tentamos contato com a SuperVia e com a Secretaria de Transportes, mas não obtivemos retorno.
Publicado por Isabella Topfer
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