Entre bonecas, camisas e cartas
- Nicole Mendes e Palloma Miranda
- 22 de out.
- 5 min de leitura
Do resgate da infância ao amuleto da Libertadores, o colecionismo mostra como cada objeto pode carregar muito mais que valor material
Gabriela Bisso, 20, cresceu cercada por bonecas que sonhava ter, mas não podia. A hora da brincadeira com as amigas era marcada pela frustração: enquanto exibiam prateleiras cheias de Monster High, franquia de bonecas desenvolvida pela Mattel em julho de 2010, a dela abrigava apenas uma ou outra, fruto das limitações financeiras da família. Já adulta, a estudante de Psicologia encontrou no colecionismo uma forma de ressignificar essa dor da infância e retomar uma paixão antiga – “curar a criança interior”, como define.

A história de Gabriela é um exemplo desse fenômeno, que vai muito além de acumular objetos. Ser um colecionador é reunir itens de forma intencional, atribuindo a eles valor afetivo, estético ou histórico. Além disso, o que antes parecia restrito a pequenos círculos de amigos movimenta uma indústria em escala global. De acordo com a consultoria Grand View Research, o mercado mundial de colecionáveis foi avaliado em US$ 294,23 bilhões em 2023 e pode ultrapassar US$ 422 bilhões até 2030. Esses números abrangem segmentos diversos, que vão de antiguidades e trading cards – cartas colecionáveis – a relógios, vinhos e brinquedos.
As motivações para colecionar são múltiplas: podem nascer de memórias de infância, da vontade de completar uma série ou simplesmente do prazer de ter algo à mão que prolonga o tempo do passatempo. Em comum, está o fato de que o hobby não se resume ao objeto em si, mas ao sentido que cada pessoa projeta nele.
Para a neuropsicóloga Sara Passos, mais do que possuir, colecionar trata-se de organizar, preservar e dar significado. “Muitas vezes, o colecionismo nasce de um valor emocional ou estético, o objeto pode remeter a lembranças afetivas, ao gosto por determinada época, personagem ou estilo. Mas também pode estar relacionado a uma necessidade de organização, de dar sentido a experiências e de construir uma narrativa pessoal. A coleção passa a ser uma forma de identidade – o que guardo e valorizo também fala sobre quem eu sou”, conta.
Nem toda trajetória passa pelo resgate de uma dor antiga. Às vezes, a coleção fica na infância, mas o gesto de juntar e ordenar o mundo continua. Na memória de Caio Celestino, 20, tudo cabia em caixas. “Sempre gostei de variedade. Quando criança, tinha caixas de brinquedos do McDonald's, de carrinhos, de Lego, de revistas. Acho que era porque eu gostava de sempre ter algo para fazer. Com tanta variedade, nunca faltava opção.” Com o tempo, o objeto muda, a engrenagem fica: “Acho que nunca parei de colecionar, apenas mudei o foco”.

Estante exibindo a coleção de mangás de Caio. Foto: arquivo pessoal.
A coleção de Lego estacionou quando Caio completou 12 anos; hoje o alvo são os mangás, com um horizonte simples e obstinado, “completar todos os volumes de Chainsaw Man”. Há lembranças que funcionam como pequena lenda de origem. “A teia do Homem-Aranha… meu primeiro boneco, aos seis anos, veio sem ela. Só em 2016 consegui outro com a teia”.
Esse vai e vem de objetos, metas e prioridades mostra que colecionar não pertence a uma idade, mas a um estado de espírito: o que importa é a possibilidade de manter um fio, de ter sempre algo a fazer, de ajustar a coleção ao bolso e ao tempo. Porém, quando o desejo fica maior do que o espaço e o orçamento, a linha de segurança aparece.
Como lembra Passos, o hobby perde o prumo quando “ultrapassa o limite do interesse e do prazer, transformando-se em um comportamento compulsivo ou obsessivo… quando a pessoa sente que precisa adquirir determinado item a qualquer custo, mesmo que envolva dívidas, conflitos familiares ou sofrimento emocional”. É preciso impor limites claros para não ‘perder a linha’: o que entra, o que sai, o que espera.
E coleção pode ser de qualquer coisa, inclusive de roupa. No armário de José Augusto Coelho, 21, o escudo vem com textura e memória. “Sempre gostei de vestir camisas de time. Desde criança tenho fascínio por elas, principalmente pelos designs diferentes e pelo conforto”. A prateleira começou a ganhar corpo em 2018 e, hoje, soma nove do Fluminense e mais treze de clubes e seleções.
Há camisas que chegam com história na bagagem – “essa eu duvido alguém ter”, brinca o padrinho ao trazer a do Agremiação Sportiva Arapiraquense, time da cidade Arapiraca –, outras que pedem garimpo, como a de 2007, achada em brechó especializado. E há as que se tornam peça de acervo pelo encontro com o ídolo: a quarta de 2022, homenagem aos 120 anos do clube, autografada pelos jogadores Germán Cano e John Arias. Entre todas, uma virou rotina de fé. “A camisa branca de 2023 foi meu ‘amuleto da sorte’ na Libertadores, usei em todos os jogos que fui ao estádio”.
Nem todos os objetos são aceitos pelo outro da mesma forma. No país do futebol, a coleção de camisas costuma atravessar as conversas sem resistência. “Alguns estranham, talvez por não verem a camisa como item colecionável. Mas como a cultura do futebol é normalizada no Brasil, ter várias acaba sendo comum.” Em outras prateleiras, o colecionador ainda precisa explicar melhor o próprio prazer, como Gabriela: “Colecionar bonecas sendo adulta pode parecer infantil. Em relação a mangás e quadrinhos, percebo questões de gênero, muitas vezes são considerados ‘coisas de menino’. A aceitação depende muito do ambiente e do objeto”.
Também há coleções que crescem em tempo recorde. No caso de Cesar Nicolaci, estudante de Psicologia de 21 anos, o impulso começa no entusiasmo de desejo de ter tudo sobre um universo e se traduz em metas concretas: perseguir cartas específicas de Pokémon, migrar de um set muito disputado para outro mais viável quando a concorrência aperta. O excesso nem sempre é financeiro; às vezes, é o tempo e a energia investidos na “caça”, a sensação de que a coleção está impondo o ritmo.
Do ponto de vista clínico, o ponto de virada não é a intensidade da paixão, mas o prejuízo que ela produz. Quando a compra deixa de ser escolha e passa a ser obrigação, quando estoura orçamento, contamina relações ou ocupa muitos espaços da casa, o hobby pode causar problemas. De acordo com a neuropsicóloga, para algumas pessoas, especialmente as neurodivergentes, esse limite pode ser menos nítido. "Nessas situações, o foco intenso em determinados interesses pode tornar a coleção central na vida, dificultando o equilíbrio com outras atividades e responsabilidades".
No final das contas, o colecionismo de Gabriela se sustenta em escolhas simples. No lugar de correr atrás de tudo, ela prefere mirar nas peças que ama e que cabem no bolso. A força da coleção está justamente nisto: ser íntima, mais afetiva do que grandiosa. Não é uma corrida por completude, mas uma forma de se divertir enquanto costura, peça a peça, a narrativa de si mesma.
Publicado por Miguel Ferreira
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