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CPI das Milícias: uma década e meia depois, o Estado falha em retomar territórios

  • João Barbosa e Lucas Apolinário
  • 2 de dez. de 2024
  • 7 min de leitura

Atualizado: 15 de abr.

Estrutura criminosa se reinventa para manter seu poder na política e controle nas comunidades 



Após 16 anos da abertura da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), em maio de 2008, para investigar a relação entre grupos milicianos e a política no Rio de Janeiro, o Estado não cumpriu as recomendações estabelecidas no relatório final e as tentativas de recuperar o controle das áreas sob domínio do poder paralelo fracassaram. Enquanto isso, a milícia mantém, e até amplia, seu domínio econômico e territorial em comunidades da Região Metropolitana, sobretudo em bairros da Zona Oeste, seu reduto eleitoral desde o início dos anos 2000. 


Um levantamento do Instituto Fogo Cruzado e do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF) aponta que, entre 2017 e 2023, a milícia conquistou 25,5% dos territórios controlados por outros grupos criminosos através de confrontos armados. Dessa extensão, 78,5% estavam sob domínio da facção Comando Vermelho. Esse avanço territorial é resultado de uma aliança entre grupos de narcotraficantes e milicianos, formando uma nova configuração conhecida como 'narcomilícias'. Esse novo modelo de negócio abre outras fontes de receita para a milícia. Se antes a principal atividade era a extorsão por meio de serviços como segurança, transporte alternativo, internet e outros serviços básicos, agora o tráfico de drogas também se torna uma importante fonte de lucro. 


Segundo especialistas, a ineficácia da segurança pública no combate às milícias decorre da falta de implementação das ações propostas no relatório final da CPI de 2008, além da permanência de figuras ligadas a essa estrutura criminosa no cenário político. O doutor em violência e psicologia social, Ignácio Cano, destaca que o governo investiu em conter o tráfico, mas não deu a importância necessária para reverter o controle das milícias nas comunidades. 


— Enquanto o Estado fez um esforço muito grande com as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) para recuperar o controle territorial do tráfico, embora no final não tenha sido muito bem-sucedido, ele não fez isso em relação às milícias. Os paramilitares foram enfrentados exclusivamente através de investigações e prisões, que são fundamentais, mas não houve uma tentativa de recuperar o controle territorial — ressalta o professor. 


Evolução da milícia 

A história dessas organizações no Rio de Janeiro remonta a meados do século passado, quando ex-agentes da segurança pública atuavam como grupos de extermínio que ofereciam suposta segurança às comunidades, agindo contra os traficantes locais. Rio das Pedras, comunidade na divisa dos bairros de Itanhangá e Jacarepaguá, foi berço para essa espécie de milícia clássica, que unia bicheiros e policiais tangenciados na política fluminense. Vistos como justiceiros paralelos, esses agentes combatiam o tráfico por meio de execuções, enquanto o governo permanecia indiferente. 


Com o passar dos anos, porém, essa configuração mudou. Os matadores de aluguel passaram a enfrentar a ascensão de uma nova geração de milicianos que surgia em Campo Grande e Santa Cruz, também na Zona Oeste, na virada do século. Foi nesse período que o termo 'milícia' passou a ser adotado. Ignácio comenta sobre o ponto de virada que modificou as ações criminosas tais como conhecemos nos dias atuais. 


— Entendemos que a milícia, a partir das pesquisas que realizamos, surgiu da percepção de alguns policiais militares corruptos de que era muito mais lucrativo dominar e controlar todas as operações comerciais de determinado território e, às vezes, extorquir o dinheiro dos moradores e dos comerciantes, do que simplesmente receber uma propina do tráfico — explica o especialista. 


Essa extorsão incluía o controle do transporte alternativo, a oferta de segurança e de serviços como a internet. No campo político, o grupo ficou conhecido como 'Liga da Justiça' e foi alvo da CPI de 2008. Dois irmãos líderes dessa quadrilha, Jerominho e Natalino, vereador e deputado estadual  à época, respectivamente, foram investigados e presos. Esse modelo deu base para a ‘narcomilícia’, que, em 23 de outubro de 2023, foi responsável por incendiar quase 30 ônibus no Rio. 


Milícia como o “mal menor” 

Até a criação da CPI, pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), as milícias eram vistas como uma espécie de “mal menor”, sem nem constar no Código Penal brasileiro. Essa realidade só mudou em 2012, quando foi decretada a lei nº 12.270, com a adição de artigos que tipificam a organização de grupos paramilitares como crime. O atual presidente da Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo (Embratur), Marcelo Freixo (PT), à época presidente da CPI das Milícias pelo PSOL, contou sobre a mudança na visão social acerca dos grupos paramilitares após a Comissão. 


— Acredito que a própria CPI contribuiu para uma mudança de opinião pública nesse sentido. A milícia já é vista como máfia, ela virou crime. Avançamos muito no combate à milícia, mas o governo do Rio nunca retomou os territórios ou tirou da milícia suas fontes de renda, que é o grande problema e o principal fator para o crescimento territorial dessas milícias — enfatiza o ex-deputado. 


Após a Comissão, 226 pessoas foram indiciadas por suspeitas de envolvimento com milícias. Dentre elas, políticos e chefes da segurança pública que buscavam manter sua influência política por meio da criação de currais eleitorais em diversas regiões do Estado. Um levantamento do portal Universo Online identificou que, até 2018, cerca de 53 milicianos, entre citados e indiciados pela CPI, teriam sido mortos por conflitos armados. 


Domínio territorial 

De acordo com dados de 2023 da pesquisa citada pela reportagem, só nos últimos 16 anos, as áreas dominadas por grupos armados no Grande Rio dobrou de tamanho e representou um aumento de quase 106%. Apesar da diminuição aparente dos domínios milicianos no ano passado, cerca de 19,3% a menos, a pesquisa mostra que, nestes 16 anos, o domínio da milícia atingiu um crescimento de 204,6%, o triplo do comando dos territórios. 

Para efeito de comparação, o Comando Vermelho (CV), facção criminosa formada pelo narcotráfico que controla a maior parte da área dos grupos armados, expandiu seu território em aproximadamente 89,2% desde 2008, atingindo a marca de 242,21 km² — uma extensão territorial maior que a cidade de Recife. 


A capital do estado é dividida entre milicianos e narcotraficantes, em uma relação de 66% da área dos grupos armados sob comando dos paramilitares. A Zona Oeste da cidade do Rio, até 2023, concentra a maior presença de milicianos, com cerca de 83% da área controlada, em relação a menos de 8% do tráfico. 


De acordo com Marcelo Freixo, a política é um dos braços que permite o império territorial desse grupo. 


— Ela [milícia] nasce das relações da política com a polícia, com o território e com a eleição, além do domínio territorial e econômico. Então, a milícia tem origem na relação do Estado com os territórios. Essa é sua origem no início dos anos 2000, e até hoje a milícia é organizada dentro de um projeto de poder — argumenta o presidente da Embratur. 


Irmãos Brazão e Marielle 

A delação premiada do ex-PM Ronnie Lessa, assassino confesso da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes, levou à prisão dos irmãos Brazão em março de 2024. Segundo Lessa, a votação de um projeto de lei motivou o assassinato da vereadora em março de 2018, e os irmãos estariam por trás do crime. O PL visava regulamentar terrenos e construções irregulares em bairros das zonas Oeste e Norte do estado. O depoimento do policial reformado aponta para a participação da família Brazão em atividades criminosas, incluindo milícias e grilagem de terras. A vereadora teria se tornado alvo dos políticos por defender a ocupação desses terrenos por pessoas de baixa renda. 


Em 31 de outubro, Ronnie Lessa e Élcio Queiroz, assassinos de Marielle, foram condenados a 78 e 59 anos de prisão, respectivamente. Influentes na política, Domingos Brazão, ex-conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, e Chiquinho Brazão (União Brasil), deputado federal, construíram sua trajetória com uma forte base eleitoral em Jacarepaguá e em bairros vizinhos, como Gardênia Azul, Tanque e Rio das Pedras, na região da Grande Jacarepaguá. Os irmãos foram mencionados na CPI das Milícias de 2008 como políticos supostamente ligados ao comando de milícias nessa área da Zona Oeste. 


Além dos Brazão, Rivaldo Barbosa, ex-chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, e Ronald Paulo Alves Pereira, conhecido como Major Ronald, também estão presos, acusados de serem mentores do assassinato da vereadora. Major Ronald, inclusive, foi preso há cinco anos por chefiar uma milícia na Zona Oeste. Marcelo Freixo analisa como a condenação dos assassinos de Marielle pode enfraquecer essa estrutura criminosa:


— Acho que isso marca uma página importante na segurança pública, não só em relação à milícia, mas também em relação a esses matadores históricos que sempre atuaram no Rio de Janeiro, nunca foram investigados, nunca se tornaram réus, e, pela primeira vez, um deles está cumprindo pena e foi condenado. Sem dúvida, é um julgamento histórico — analisa Freixo. 


O combate 

Para os entrevistados, existem obstáculos em torno do combate à influência das milícias. Ignácio explica que isso se dá pelo fato de os criminosos serem agentes infiltrados no Estado, que conhecem as funcionalidades do sistema brasileiro, e completa: 


— Elas dominam o território de forma que você pode prender um, dois, três, quatro, como o Estado fez a partir da CPI das Milícias, mas isso não significa que ela desapareça — aponta o especialista. 


Diante da dificuldade, os entrevistados destacam que o enfraquecimento das milícias requer um esforço conjunto, que envolve tanto a ação repressiva quanto a oferta de alternativas legais para os serviços que esses grupos controlam, interrompendo, assim, o ciclo de exploração econômica das comunidades. Ignácio Cano enfatiza que o combate às milícias exige ações além das prisões: 


— Para acabar com as milícias não basta apenas investigar, prender e punir; é necessário ter algum mecanismo de recuperação do controle territorial. Além disso, é muito importante que você investigue as finanças, regularize muitos serviços que são oferecidos pelas milícias, como TV a cabo e transporte alternativo. É preciso combinar, de um lado, a regularização desses serviços e a definição de preços que estejam ao alcance das pessoas para que elas não precisem recorrer ao mercado ilegal e, de outro lado, sanções, investigação e punição — explica Ignácio Cano. 

Marcelo Freixo, ex-deputado e autor do relatório da CPI das Milícias, apresenta uma visão semelhante. 


— Acredito que, para enfrentar a milícia, o próprio relatório da CPI, que já tem 16 anos, apresenta diversos indicativos importantes, não só a prisão, mas também a retomada das fontes de renda que têm relação direta com o domínio territorial — finaliza Freixo.



Faculdade de Comunicação Social | Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)

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