Projeto de lei reacende debate sobre criminalização do funk e liga alerta para subtrama política no Rio
- Matheus Andrade
- 17 de jul.
- 5 min de leitura
Em meio à polêmica envolvendo artistas cariocas, narrativa de ‘narcoterrorista’ é implementada por autoridades do Estado; especialista alerta para os riscos
Além das paisagens naturais, uma das faces do Rio de Janeiro é representada também através da música. As favelas que compõem a cidade são, em muitos casos, as principais exportadoras da cultura carioca: a moda, as gírias e os hits do momento, que, majoritariamente, são nos estilos musicais do funk, trap e rap, gêneros que acabam tendo como principal característica retratar aquelas respectivas vivências dos moradores.
No entanto, o que se pôde observar nos últimos meses foi um debate sobre esta retratação que vem das comunidades cariocas contra os personagens que dão voz a essas músicas e ao conteúdo transmitido por eles. A cultura favelada que, em muitos casos é usada por outras ramificações artísticas como novelas, filmes e imagens, viu o funk, mais uma vez, virar palco de discussões políticas e sociais.
“Lei anti-Oruam”
O pontapé inicial dos embates entre narrativas aconteceu fora do Rio de Janeiro, mas envolveu um MC carioca. Em janeiro deste ano, a vereadora da cidade de São Paulo, Amanda Vettorazzo (União Brasil), apresentou um projeto de lei que tem como objetivo proibir que a Prefeitura de São Paulo contrate artistas que façam apologia ao crime ou ao uso de drogas.
Em suas redes sociais, a vereadora escreveu: "Quero proibir o Oruam de fazer shows em São Paulo! Chega de cantores de funk e rap fazendo apologia explícita ao crime organizado. Facções são INIMIGAS e devem ser tratadas como tal. Em São Paulo, não!"

Com isso, a proposta ficou conhecida como ‘Projeto Anti-Oruam’, em referência ao cantor de trap carioca, mesmo sem citar nominalmente o jovem. Amanda Vettorazzo argumentou, no texto apresentado à Câmara Municipal paulista, que o projeto "surge da necessidade de garantir que tais eventos sejam promovidos de forma responsável, especialmente no que diz respeito à proteção de crianças e adolescentes".
Pauta de toda essa discussão, Mauro Davi dos Santos Nepomuceno, o MC Oruam, de 24 anos, é filho do traficante Marcinho VP, preso desde 1996, um dos chefes do Comando Vermelho. Desde 2021, o jovem é um dos principais artistas da cena do trap carioca.

— O perigo (deste tipo de lei) é o fortalecimento de mais um braço da necropolítica – mesmo quando nossos jovens estão com microfones na mão ao invés de armas, como antigamente o perigo era violão e o pandeiro, o berimbau. Fazemos artes para expressar nossa vida, nossa experiência, nosso sentimento, nossa visão de mundo, nossas críticas e utopias. Criamos com arte símbolos, imagens, idealizações muitas vezes românticas. A violência, o dinheiro, a espetacularização da vida, a exibição de símbolos marcadores de classe, a ideia do consumo como produtor de valor e identidade são elementos que estão espraiados na sociedade, são expressões sociais do tipo de capitalismo e vida social que vivemos — explica o professor de história e filosofia, Jonathan Raymundo, pesquisador de questões raciais no Brasil.
Vale ressaltar que, o termo 'necropolítica', usado pelo educador, é uma expressão cunhada por Achille Mbembe (cientista político, historiador, intelectual) e refere-se ao uso do poder político para decidir quem vive e quem morre, especialmente em contextos de desigualdade social e violência. É uma forma de poder que opera através da gestão da morte, seja deixando morrer, seja fazendo morrer determinados grupos ou populações, e está intimamente ligada a questões de raça, classe e colonialidade.
Facções cariocas como ‘narcoterroristas’
Alguns meses após o caso envolvendo o artista carioca em São Paulo, em maio, o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), viajou para Nova York, nos Estados Unidos, com o objetivo de buscar apoio para classificar facções do Rio como narcoterroristas. Segundo um relatório produzido pelas inteligências das polícias Militar e Civil, existem ligações entre chefes do Comando Vermelho e grupos milicianos com redes internacionais de crime, como máfias italianas e organizações incluídas como terroristas. Com isso, o documento seria entregue às autoridades dos Estados Unidos para obter esse reconhecimento formal.
Dias após essa movimentação do governo do Rio, um outro artista carioca tornou-se manchete: Marlon Brendon Coelho Couto, mais conhecido como MC Poze do Rodo. Ele foi preso por agentes da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) da Polícia Civil do RJ, investigado por apologia ao crime e por envolvimento com o tráfico de drogas.
Algemado em casa, sem camisa, chinelos e sendo acusado de ligação com o tráfico, a imagem do MC carioca no momento da sua prisão rodou por todo o Brasil.. Durante a sua condução à penitenciária, o artista criticou a decisão e apontou uma suposta perseguição da mídia e das autoridades.

— Quem tem que pegar está lá no morro (traficantes), não sou eu não. Essa implicância comigo já é de muito tempo. Só eu que passo isso aqui. Manda fazer isso lá, com filho de desembargador (...) Isso é perseguição. É cara de pau. Não tem prova com nada. Manda provar — disse Poze, naquela ocasião, em entrevista à TV Globo.
Após cinco dias preso, a Justiça do Rio concedeu habeas corpus para o cantor. O desembargador Peterson Barroso, da Segunda Câmara Criminal, determinou a soltura e o cumprimento de medidas cautelares pelo artista. Na decisão, ele avaliou que a medida de prisão não se sustentava, pois não ficou demonstrada a imprescindibilidade da prisão para a investigação.
Coincidência ou não, uma das manchetes ligadas ao MC que estamparam o noticiário, durante o período em que esteve preso, foi relacionada à sua esposa, a influenciadora Vivi Noronha, que estaria ligada a um esquema de lavagem de dinheiro da cúpula do Comando Vermelho (CV). O egípcio Mohamed Ahmed Elsayed Ahmed Ibrahim, que já atuou como operador do grupo terrorista Al-Qaeda, teria participado da trama criminosa, segundo o inquérito. Mohamed, porém, não foi alvo da operação e, segundo as autoridades, a investigação não teve relação direta com o inquérito que levou Poze à cadeia.

Narrativas perigosas
Segundo Jonathan Raymundo, os fatos possuem ligação. O pesquisador ressalta que tais tipos de abordagens midiáticas em torno desses artistas e a criação de novas políticas de repressão ligadas a esse gênero musical é algo que está enraizado na sociedade brasileira, e isso fortalece a narrativa de criminalização desse grupo, majoritariamente formado por pessoas negras.
— As mesmas vozes que exigem liberdade de expressão sem regulação, quando o assunto é pedido de intervenção militar, são do mesmo campo político que busca criminalizar o funk com o argumento de apologia ao crime; o que não deixa de ser revelador de um velho olhar classista e racista sobre a favela, sua música e suas expressões artísticas. Uma história longa que remete ao samba, ao bailes black, aos terreiros. No final, não é o que se diz, mas onde e quem diz — afirma.

Nascido em Realengo, na Zona Oeste do Rio, o educador também é o idealizador e produtor cultural do Festival Wakanda, em Madureira. Tendo proximidade com a cultura negra e periférica, Jonathan Raymundo alerta como o fortalecimento dessa narrativa ameaça de forma indireta as favelas e abre precedentes que podem se tornar preocupantes contra esse grupo da sociedade no futuro.
— Só mais uma prova que o que rege essas propostas de lei não é a racionalidade, a constituição, mas o velho ódio racial, o que Achille Mbembe chamou de necropolítica. A lei brasileira define terrorismo como atos praticados motivados por xenofobia, discriminalização, preconceito de raça, cor, religião com a finalidade de causar terror social, causando danos físicos e psicológicos a população. É uma forçação de barra que visa à manutenção das justificativas sociais que historicamente criminalizam esses que são o alvo prioritário do assassinato e da violência do Estado — completa.