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O trauma silencioso que assombra gestantes no parto e no pré-natal

  • Nicole Mendes, Palloma Miranda e Rebeca Passos
  • 16 de jul.
  • 6 min de leitura

Atualizado: 17 de jul.

Mulheres enfrentam violação de direitos e desafios com a violência obstétrica no Brasil


Foto: Pixabay
Foto: Pixabay

Era sexta-feira, 13 de março de 2020. Dois dias depois de declarada a pandemia de covid-19, o Brasil parou, e a vida de Cristina Lameira também virou de ponta-cabeça. Grávida de cinco semanas, deu entrada na emergência de um hospital com um sangramento. Entre estabelecimentos fechando e o princípio de caos nas ruas, a jornalista de 47 anos optou pelo atendimento público por ser o mais próximo de casa. 


Com a ultrassonografia feita no dia anterior em mãos, entrou no consultório em busca de esperança. Aquela era a sua segunda gestação, e a possibilidade de um aborto espontâneo tocou em feridas que ainda doíam. A primeira, tão planejada, não terminou com um bebê nos braços, mas com um trauma que deixou marcas profundas. Cristina se agarrava aos relatos de mulheres que, mesmo com sintomas parecidos, conseguiram chegar ao fim da gravidez com um coração forte pulsando no ventre.


Então, veio a frieza. Quando pegaram os exames, as médicas, que deveriam acolhê-la, agiram como se ali não morasse um sonho. "Está muito recente ainda. A gente não pode nem considerar ainda uma gravidez, porque não tem nada. Não tem nem embrião ainda, só a vesícula vitelina. Não tem o que fazer”. Sem remédios ou outras orientações além de repouso e espera, o desejo de reverter a situação parecia ser só da futura mãe – que, no final das contas, acabou sofrendo mais um aborto espontâneo. 


A violência obstétrica é, antes de tudo, uma forma de desrespeito. O termo se refere a práticas abusivas contra mulheres durante o pré-natal, o parto e o pós-parto. Esses abusos não se restringem à conduta de profissionais de saúde e incluem, também, falhas estruturais em clínicas e hospitais, além de políticas institucionais que violam os direitos das gestantes, que podem transformar o processo de gestar e parir em uma experiência traumática.


Apesar de ser uma realidade antiga, o termo 'violência obstétrica' ganhou visibilidade a partir dos anos 2000, impulsionado por movimentos de mulheres e profissionais da saúde que começaram a denunciar práticas abusivas durante o parto. Em 2014, a Organização Mundial da Saúde passou a reconhecer o problema como uma questão de saúde pública. No Brasil, apenas em 2017, o Ministério da Saúde publicou diretrizes nacionais para a assistência ao parto normal, com o objetivo de implementar a Política Nacional de Humanização do Parto e Nascimento.


Para Rose Ferreira, advogada cível e doutora em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), a violência obstétrica fere não apenas a integridade física, mas também o psicológico, a saúde e a autonomia das vítimas. “Ela ocorre sempre que percepções discriminatórias e machistas atuam no sentido de considerar que o sofrimento faz parte do parto e que a mulher não tem a capacidade ou o direito de se autodeterminar”, esclarece. 


A profissional explica que, entre as formas mais recorrentes, estão o uso de práticas invasivas, como o fórceps e a manobra de Kristeller, a indiferença à dor da gestante e a escolha inadequada da via de parto. “Também podemos citar a falta de informações claras, a ausência de consentimento, a negligência no uso de medicamentos e a condução de procedimentos que podem resultar em complicações, como a retenção de restos placentários”.


Cristina conta que a consciência de ter sofrido uma agressão veio somente anos depois. “Percebi há pouco tempo, porque tive contato com uma pesquisa que falava sobre o assunto e tive essa noção. Mas quando ocorreu, achei que foi um atendimento mais frio porque eu estava sofrendo um aborto espontâneo. Não me senti acolhida”. Essa descoberta não é incomum: muitas mulheres só percebem anos depois, quando a vivência gera marcas no psicológico. 


Mais do que ferimentos físicos, a violência obstétrica gera traumas psicológicos que podem durar anos. Para Rafaela Schiavo, psicóloga especializada em Psicologia Perinatal e da Parentalidade, mesmo mulheres que não tinham nenhum sinal de sofrimento emocional durante a gravidez podem desenvolver depressão após vivenciarem uma experiência de parto traumatizante. “Outros transtornos mentais comuns são o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e a tocofobia”, conta.


Tatiana Leite, médica do Instituto de Medicina Social da Uerj e pesquisadora do estudo Nascer no Brasil 2 da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), afirma que mulheres que sofreram violência obstétrica têm um comprometimento maior da sua saúde mental. Foi o que aconteceu com Cristina quando descobriu uma terceira gravidez em 2021. “Eu fiquei muito apavorada. Apavorada por pensar que iria passar por tudo de novo”, relata. 


Outra consequência comum é a resistência dessas mulheres em retornar aos serviços de saúde, especialmente da rede pública. “Ainda que esse acompanhamento seja feito na atenção básica, e não na maternidade onde ela de fato ganhou o bebê, a vítima associa o serviço de saúde como violento, então não quer voltar para esse lugar”, explica a médica.  


Muitos casos são silenciados por medo ou falta de informação. Foto: reprodução/Biblioteca Nacional de Enfermagem
Muitos casos são silenciados por medo ou falta de informação. Foto: reprodução/Biblioteca Nacional de Enfermagem

Cristina acredita que o acesso a informações claras e a profissionais de qualidade poderia mudar tudo. A dor de um aborto espontâneo, que já era pesada demais, ficou ainda pior sem acolhimento. “É essencial se cercar de todos os cuidados, pegar indicações boas de obstetra”, recomenda. 


Depois das perdas gestacionais, a jornalista passou a valorizar ainda mais o acolhimento das pessoas ao seu redor. “Na última gravidez, finalmente tudo correu bem. Eu tive atendimentos que me deixaram muito mais tranquila, gente me falou coisas positivas”. Ela lembra até hoje da médica que, mesmo fora da especialidade, garantiu que tudo daria certo.  


Apesar de cada vez mais discutida, a violência obstétrica ainda não é tratada por uma lei federal específica no Brasil. Para Tatiana, o principal desafio é definir, com clareza, o que é ou não violência nesse contexto – e nem sempre isso é simples. Enquanto casos de violência física, psicológica ou sexual são mais fáceis de reconhecer, intervenções médicas podem ter uso legítimo ou se tornar abuso, dependendo do consentimento e da forma como são feitas.


Hoje, alguns estados seguem a legislação pioneira da Venezuela como referência, mas o progresso no país ainda é lento. Existem 21 projetos de lei sobre o tema, como o PL 7.633/2014, que quer obrigar hospitais a divulgarem informações sobre atendimento humanizado e incluir o tema na formação de futuros profissionais de saúde. Ainda assim, muitas mulheres seguem sem saber que podem e devem denunciar abusos.


Para a médica, enfrentar a violência obstétrica exige mais do que uma canetada. Seria necessário investir em quatro pilares: informação; formação humanizada e técnica para profissionais de saúde; vigilância dentro das maternidades; e fortalecimento do aparato legal para que as denúncias não fiquem somente no papel. “Só empoderar a mulher com informação não basta, se todo o sistema não muda”, afirma. Sem fiscalização, a violência continua invisível. 


O problema não está no governo ou nos hospitais, diz a psicóloga Rafaela. Há uma ausência de formação especializada, e é por isso que iniciativas de capacitação são tão urgentes. Mais de 55% das mulheres precisam de acompanhamento psicológico nesse período, e a maioria ainda não encontra esse suporte, seja na rede pública, seja na privada. “Não se trata de fazer terapia com qualquer psicólogo. É fundamental buscar um profissional que compreenda as especificidades emocionais desse período”, alerta. 


No território nacional, menos de 1% dos mais de 500 mil psicólogos têm formação em Psicologia Perinatal, e esses especialistas estão concentrados em grandes metrópoles como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. O resultado? A maior parte das mulheres, principalmente fora das capitais, enfrenta o trauma sem ter um suporte adequado.


A advogada Rose Ferreira lembra que a lei garante caminhos para denunciar. Mulheres vítimas de violência obstétrica – e até mesmo seus bebês, representados por um responsável – podem processar hospitais, profissionais de saúde ou o próprio Estado. “É muito importante guardar tudo que possa servir como prova: prontuário médico, exames, fotos, vídeos, áudios, relatos de testemunhas, laudos psicológicos. E toda essa documentação deve ser avaliada por uma profissional especializada”, explica.


Olga, filha de Cristina, nasceu em 2021. Foto: reprodução/Instagram
Olga, filha de Cristina, nasceu em 2021. Foto: reprodução/Instagram

A psicóloga Rafaela Schiavo defende que os familiares também precisam estar preparados para entender o que é a violência obstétrica e agir com mais sensibilidade durante a gestação, o parto e o pós-parto. “Em poucas sessões, avós, parceiros ou amigas próximas já aprendem a oferecer um apoio que vai além da presença física”, destaca.


Na prática, foi isso que mudou a história de Cristina. “Na primeira vez foi tudo tão rápido que nem deu tempo de entender. Na terceira, eu tive mais sorte e consegui estar perto de quem foi acolhedor”, conta. Hoje, Cristina compartilha o conselho com outras mulheres: “Ficar perto das pessoas certas faz toda a diferença. Você não precisa enfrentar isso sozinha.”


Faculdade de Comunicação Social | Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)

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