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“O grande desafio do Brasil é definir o espaço da indústria do cinema”

  • Gabriel de Souza e Sabrina Massuia
  • há 4 dias
  • 8 min de leitura

Avanços numéricos contrastam com a fragilidade estrutural do cinema brasileiro, ainda distante de se firmar como indústria 


Dirigido pelo pernambucano Kleber Mendonça Filho, o longa-metragem “O agente secreto” faturou R$ 9,4 milhões desde a sua estreia no início de novembro, conforme os dados do Sistema de Controle de Bilheteria da Agência Nacional do Cinema (Ancine). Com esse desempenho, a produção se encontra na liderança da bilheteria nacional em 2025, seguido dos filmes internacionais.


Eleito o representante do Brasil na disputa do Oscar de melhor filme internacional, o acúmulo do público de 335.732 pessoas, divididas em 1.372 salas, reforça o crescimento do cinema na economia brasileira, apesar das dificuldades em se consolidar como uma indústria. 


Imagem: Unsplash
Imagem: Unsplash

Bons resultados? 

Em outubro, a Oxford Economics, instituição de pesquisa vinculada à Universidade de Oxford, lançou um relatório sobre a participação do mercado audiovisual na economia brasileira em 2024. Ela aponta que o setor não só movimentou R$ 70,2 bilhões para o Produto Interno Bruto (PIB), que é a soma de todos os bens e serviços produzidos no país em um ano, mas também gerou 608.970 empregos. 


A pesquisa utiliza o conceito multiplicador para explicar tal relação. Isso significa que, no ano passado, para cada R$ 10 milhões gerados diretamente pelo setor, outros R$ 12 milhões circularam na economia. Em síntese, revela-se um fator multiplicador de 2,2 no PIB.


Esses resultados podem levar ao imaginário de um mercado cinematográfico semelhante a Hollywood, nos Estados Unidos, ou a Bollywood, na Índia. Entretanto, o oligopólio da indústria criativa, a disponibilidade de editais culturais e a redistribuição desigual de verbas afetam a construção de uma cadeia produtiva parecida com os exemplos internacionais.


As dificuldades

Uma indústria cinematográfica se constitui de organizações representadas pelos produtores, pela infraestrutura, pelas distribuidoras e pelas exibidoras. Tais áreas articulam os contratos entre os empregadores e as empresas, a fim de materializar o produto final, ou seja, o filme. 


Historicamente, a instabilidade do posicionamento político direcionado às expressões artísticas dificultaram a consolidação da cadeia cinematográfica brasileira. De acordo com o professor de economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Luiz Carlos Prado, o incentivo desigual à realização do audiovisual possibilitou o domínio de poucas empresas e, como consequência, a segmentação do público.


“O Brasil tende a ser muito bem-sucedido em um tipo específico de filme, que é a comédia. Isso vem desde o pós-guerra, a pornochanchada foi sucesso. Nós temos uma maneira de fazer comédia muito particular. Mas não conseguimos produzir uma quantidade grande de obras que alcança um público mais ou menos amplo em outras áreas, que não seja especificamente essa”, afirma o economista.


Ele destaca o domínio das empresas Globo Filmes, Conspiração Filmes, O2 Filmes e a Paris Filmes com o capital para manter uma cadeia produtiva autossuficiente. Além disso, há a garantia do retorno financeiro, o que converge tanto para um cenário competitivo e excludente, quanto para limitar a diversidade de gêneros.


Até o momento, o top 5 de maiores bilheterias dos filmes nacionais neste ano se revezam nas empresas citadas. Temos, no primeiro e no segundo lugar, "O auto da compadecida 2" e "Ainda estou aqui", ambos da Globo Filmes. "Chico Bento e a goiaba maraviósa", "Vitória" e “Homem com H” pertencem à Paris Filmes.


“Então, o próprio cinema vai ser segmentado”, afirma Luiz, ao concluir que o oligopólio afeta a construção de uma indústria cinematográfica. Ele também cita o fator “sorte” para as produtoras independentes, mas, muitas vezes, ela é potencializada por meio dos privilégios.


“O Walter Salles alcança um grande público. Ele é um cinema autoral de imensa qualidade, isso é o ideal. É parecido com o que temos na Europa ou nos Estados Unidos de cinema autoral.  Mas, aqui, você consegue isso com poucos autores.”


Houve avanços, mas ainda é pouco

Cena de “O Último Azul” (2025), longa de Gabriel Mascaro vencedor do Urso de Prata no Festival de Cinema de Berlim. (Foto: Guilhermo Garza/Desvia/Divulgação)
Cena de “O Último Azul” (2025), longa de Gabriel Mascaro vencedor do Urso de Prata no Festival de Cinema de Berlim. (Foto: Guilhermo Garza/Desvia/Divulgação)

O Anuário do Audiovisual Brasileiro de 2024, divulgado pela Ancine, trouxe números positivos para o mercado. Houve um aumento de 9,8% no público das salas de cinema (125,3 milhões) e de 6,2% na renda (R$ 2,5 bilhões) em relação a 2023, considerando a correção inflacionária. No cenário global, o mercado brasileiro foi destaque pelo crescimento econômico. 


Mas, apesar desta crescente, os longas brasileiros representam somente 10,1% da renda total de 2024, enquanto filmes estrangeiros foram responsáveis por 89,9%, como aponta o Informe Anual do Mercado Cinematográfico, também levantado pela agência. Isso evidencia que, apesar dos avanços, o cinema nacional ainda é um setor economicamente enfraquecido e escasso, como aponta Prado. 


“O grande desafio do Brasil é definir o espaço da indústria do cinema. O cinema independente não traz o mesmo retorno de bilheteria do dependente, mas traz prestígio, são diferentes mercados. O cinema nacional só funciona se você tiver uma escala de operação e uma vez que você produz um filme, o custo é dado, e o retorno financeiro é muito incerto. Então, acaba sendo um mercado de risco, que trabalha em escala”, comenta o economista. 


Fonte: Ancine. (Arte: Sabrina Massuia)
Fonte: Ancine. (Arte: Sabrina Massuia)

E, ainda que de forma gradual e lenta, o cinema vem se recuperando após a crise sanitária do coronavírus. Prado acredita que o audiovisual brasileiro se voltará cada vez mais para produções de serviços pagos de conteúdos por streaming


“Temos que ser realistas. Eu não vejo a sala de cinema como o futuro do cinema. Eu não acho que ela vai desaparecer, mas você vai para o interior e é raro encontrar uma cidade em que haja cinema. Os cinemas de rua mal existem, cada vez menos temos. O público vai crescer através de meios remotos, e aí temos um problema: hoje em dia falamos da economia da atenção, em que as mídias competem para entre si”, explica. 


Plataformas de streaming e a necessidade de regulamentação

O relatório de Streaming Global do Finder de 2021 aponta o Brasil como o segundo maior consumidor dos serviços de streaming no mundo, ficando somente abaixo da Nova Zelândia. Entretanto, quando falamos de produções brasileiras, o cenário não se diferencia muito do cinema tradicional: apenas 8,5% dos conteúdos dos vídeos por demanda (VODs) distribuídos no país são de origem nacional. 


Diante disso, tem surgido debates em torno da regulamentação dessas plataformas. Em novembro, a Câmara dos Deputados aprovou o texto-base do Projeto de Lei n. 8.889/17, em que estabelece uma cota de 10% dos conteúdos digitais que devem ser destinados a produções brasileiras, sendo 50% voltados para produtoras independentes. Além de uma contribuição paga pelas empresas que pode ser de 2% ou 4%.


Nas redes sociais digitais, profissionais do setor audiovisual lançaram o “Manifesto por uma Regulamentação do Streaming à Altura do Brasil”, documento que propõe que as plataformas destinem, no mínimo, 12% de sua receita bruta no mercado nacional. Desse total, 70% deve ser designado ao Fundo Setorial do Audiovisual, por meio da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), um imposto que recai sobre a produção, distribuição e exibição de obras audiovisuais; garantindo o fortalecimento de políticas públicas eficazes e com grande potencial de retorno financeiro e fiscal. Já o valor restante de 30% pode ser investido diretamente em obras brasileiras independentes, por intermédio de licenciamento ou pré-licenciamento, como afirma o texto. 


O manifesto foi assinado por artistas como Fernanda Montenegro, Matheus Nachtergaele, Joel Zito Araújo e Lúcia Murat, entre outros. Eles defendem que “a regulamentação do VOD é hoje a medida mais urgente e estratégica para garantir o futuro do audiovisual brasileiro.” O movimento se expandiu para além do virtual durante o Festival de Cinema Sul-Americano de Bonito (Cinesur), em que diversos atores brasileiros discursaram em defesa da regulamentação do streaming no país.


Cinema independente

No “Formulário de posicionamento sobre proposição legislativa nº. 25”, lançado em outubro, a Ancine alertou sobre os riscos que o cinema independente ocorre com a implementação da PL 8.889/17. Apesar da proposta incluir produções menores, com essas alterações "o fomento público perde expressivamente sua estratégia de desenvolvimento da produção independente, pois as plataformas ampliam desproporcionalmente sua possibilidade de decidir onde, como e com quem investir os recursos, com perda do foco na produção independente", como afirma o documento. Nele, é indicado a revisão de deduções, descontos e opções de investimentos diretos da Condecine-Streaming, de modo a fortalecer o financiamento da produção nacional independente.


Esse mercado, porém, já enfrenta grandes desafios de financiamento por fazer parte de setor concentrado na mão de poucas empresas. O jornalista, produtor e autor do documentário “Goytacaz: o filme”, Leonardo Puglia, fala sobre as dificuldades de ser autônomo na área. 


“Goytacaz: o filme” é o meu primeiro longa-documental, e é uma produção completamente independente, sem nenhum tipo de financiamento público ou privado, e eu também trabalhei em quase todas as etapas: dirigi, filmei, editei, escrevi o roteiro. Um desafio para quem produz cinema é aprender marketing também, fazer com que os seus filmes cheguem até as pessoas”, afirma o jornalista.


O documentário acompanha a mobilização popular feita em Campos dos Goytacazes, cidade do Rio de Janeiro, para a recuperação do Estádio Ary De Oliveira e Souza, popularmente conhecido como Aryzão. Por essa razão, Puglia explica que o uso de recursos de financiamento público se tornou inviável. 


“Financiar o documentário foi uma escolha minha, porque quando você faz um filme com recursos públicos, existe uma burocracia e você precisa aprovar um roteiro antes. Com esse filme, isso seria impossível, porque ele foi sendo feito a reboque dos acontecimentos”, complementou. 


O papel das políticas públicas no setor audiovisual

As políticas públicas são fundamentais para o fomento da indústria audiovisual. As leis Rouanet (n.º 8.313/1991) e Paulo Gustavo (n.º 195/2022) incentivam o cenário cultural ao captar e direcionar recursos.


O incentivo fiscal pode ser de competência federal, estadual, distrital e municipal, que podem promovê-lo por meio da arrecadação de parte dos impostos. Os objetivos seriam simplificar ou reduzir os custos administrativos, a compensação de gastos realizados pelos contribuintes com serviços não atendidos pelo governo, o apoio financeiro de entidades civis que executam ações complementares aos papéis tradicionais do Estado e a promoção e equalização das rendas entre regiões.


Como exemplo, pesquisa realizada pela Fundação Getulio Vargas (FGV) mostra que a Lei Rouanet teve um impacto econômico significativo para o país, totalizando mais de R$ 49,8 bilhões. Esse valor abrange dois componentes: o impacto econômico direto, que consiste em mais de R$ 31 bilhões em patrocínios captados e corrigidos pela inflação ao longo da história; e o impacto indireto, estimado em R$ 18,5 bilhões, resultado da geração da cadeia produtiva que decorre desses projetos. 


O professor Luiz Carlos Prado reforça a importância do incentivo fiscal: “a produção de cinema no Brasil depende, essencialmente, de um mecanismo de financiamento público, que é o que a Ancine faz.” Também orienta sobre como os filmes precisam dos nichos criados pelos gêneros para obter o sucesso de financiamento, uma vez que é necessário o retorno pela bilheteria.


Entretanto, Puglia destaca a burocracia para os cineastas independentes conseguirem o máximo uso: “Em todas as etapas da cadeia do audiovisual (...) nem todo mundo tem esse know-how de fazer os editais dentro dos requisitos que os recursos públicos exigem.”


Além do financiamento público, ações que visam à democratização do cinema em diferentes espaços devem ser incentivadas, como cineclubes em ambientes educacionais e debates públicos sobre a sétima arte. O panorama atual em que vemos o triunfo de filmes como “O agente secreto” pode ser estimulante e deve ser celebrado, mas, a rigor, é preciso entender que ainda há muito a ser feito para que o mercado cinematográfico brasileiro, de fato, prospere. 


Redator: Gabriel Gatto  



Faculdade de Comunicação Social | Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)

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