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Fubanga na favela, mas cool na Malu Borges

  • Ana Clara Alves
  • 13 de jan.
  • 6 min de leitura

Atualizado: 28 de jan.

“Preta chave da favela / Ela me odeia e mesmo assim inspiro ela / […] Paty na minha favela / Não saio do álbum de ref dela”— Letra de AMARROU, canção de Tasha & Tracie


Camisa de time, unhas mega decoradas, cabelos volumosos, boca grande, animal print, “piranha” no cabelo, banho de lua, marquinha de sol bem aparente. Na internet, chamam isso de "Brazilcore" (sim, Brasil com Z), mas, para mim, isso é o estilo de vida de uma mulher favelada desde sempre. Sinto que já vim ao mundo vestindo a camisa do Flamengo, de minissaia, com o banho de lua em dia, cabelo preso em uma piranha devido ao calor, e um par de Havaianas com francesinha no pé — e era assim muito antes de virar tendência nos feeds do Instagram de influencers cool.


A estética periférica, antes rejeitada e alvo de preconceito, agora é transformada em símbolo de autenticidade quando interpretada por corpos brancos e privilegiados. Influenciadores digitais como Malu Borges lucram e ganham prestígio ao incorporar esses elementos, enquanto as mulheres faveladas, que sempre viveram e criaram essa estética, continuam sendo vistas como “fubangas” — termo que denota algo de baixa classe, vulgar ou desvalorizado, especialmente quando associado a corpos negros ou periféricos 


Enquanto corpos brancos e privilegiados ganham aplausos por vestir camisas de time ou adotar gírias, quem sempre viveu essa estética na pele segue excluído e estigmatizado. O "Brazilcore" celebra os símbolos, mas ignora os criadores. Essa contradição expõe não só o racismo estrutural, mas também o quanto a sociedade lucra com o apagamento das periferias.


Por que aquilo que é “fubanga” na favela se torna “estilo de vida” ao cruzar o túnel? Essa contradição não é apenas estética; ela é política, é sobre poder e sobre o apagamento contínuo das mulheres pretas e periféricas. 


No Brasil, o racismo estrutural funciona como uma lente seletiva que dita o que é valorizado ou rejeitado, dependendo de quem está usando ou criando. Na favela, o tênis de marca no pé de um jovem preto pode ser associado ao tráfico. Na alta moda, o mesmo tênis é rebatizado como “streetwear de luxo” (oi, Adidas Samba!) e vendido por preços exorbitantes. A camisa de time de futebol, que no dia a dia é desprezada como algo “de vagabundo”, torna-se item indispensável quando ganha o selo da elite branca. Aliás, já viu quanto custa uma camisa de time? Na loja oficial, é quase impossível achar uma por menos de R$ 300. O que era acessível e popular virou artigo de luxo (aliás, meu sonho do momento é a camisa “Identidades” do Flamengo, mas não vou gastar 300 reais em uma camisa de malha quente).


Esse fenômeno revela o quanto a sociedade é pautada por uma lógica excludente: valoriza o produto, mas não quem o criou e sustenta a cultura que o legitima. Mais do que uma questão de estilo, essa dinâmica reforça a marginalização de corpos periféricos e a exploração de sua criatividade como fonte de lucro. O próprio streetwear, que sempre foi visto de forma pejorativa, só passou a ser aceito quando as grandes grifes começaram a inserir o estilo nas suas coleções. E quando essas tendências (oi, Adidas Samba de novo!) deixam de ser novidade para a elite, elas voltam a ser descartadas como algo “fubanga”. Foi o que aconteceu com os biquínis com as cores e a bandeira do Brasil, as estampas de animal print, que passaram de ícones de moda para vergonhas em um piscar de olhos.


Ao apropriá-los, influenciadores digitais e marcas não apenas lucram, mas também ressignificam esses símbolos culturais, retirando deles seu contexto e transformando-os em tendências desconectadas de sua origem. O funk, por exemplo, foi por anos criminalizado e associado à violência quando produzido e consumido nas favelas. Hoje, DJs brancos (oi, Dennis!) e artistas de classe média são aclamados ao remixarem os mesmos beats, enquanto o funkeiro da quebrada ainda enfrenta preconceito e censura.


Apropriação cultural: lucro sem reconhecimento  


Os elementos culturais das periferias, como cabelos, roupas, gírias e atitudes, são apropriados de maneira seletiva, sem o devido crédito ou a inclusão real de seus criadores. As marcas e os influencers não apenas comercializam estéticas de corpos periféricos, mas também as transformam em símbolos de status e poder, enquanto as pessoas vindas dos lugares onde essas expressões nasceram continuam marginalizadas e silenciadas. A “publi” da influenciadora Malu Borges para a Animale é um grande exemplo disso.


Malu usou a música “Meu Lugar” de Arlindo Cruz em um vídeo em que ela aparece usando looks da grife na Zona Sul do Rio de Janeiro. Uma música que fala claramente sobre um lugar extremamente amado e querido por seu público, nosso estimado bairro de Madureira, no coração da cidade. O timing da música foi péssimo! Ela poderia ter usado algo do Tom Jobim, que combinaria muito mais com o contexto e a identidade da grife.


Contradições de valorização fora do contexto  


A diferença entre o que é considerado “fubanga” na favela e o que se torna cool nos espaços elitizados não poderia ser mais evidente. Há algo intrinsecamente contraditório nessa dinâmica de valorização seletiva. O que na periferia é rotulado como vulgar, inferior e até marginalizado, quando repaginado em um corpo branco ou na vitrine da alta moda, vira símbolo de autenticidade, estilo e poder.


O que é visto como “fubanga” de repente se transforma em algo altamente cobiçado e fashion quando inserido em um contexto considerado de elite. Camisas de time, tênis de marca, cabelo trançado, e até o estilo despretensioso de quem vive a rua, viram símbolos de um estilo de vida cool e descolado quando apropriados por marcas ou celebridades brancas.


Essa contradição revela o descompasso entre o valor atribuído às expressões culturais nas comunidades e sua exaltação ao serem apropriadas por contextos elitizados. O funk, quando produzido por artistas periféricos como o DJ Rennan da Penha, é associado à decadência social. Contudo, ao ser remixado por DJs e artistas de classe média, como Pedro Sampaio, se torna um símbolo de inovação e liberdade, ganhando aceitação no mainstream.


Isso levanta questões fundamentais sobre como diferentes classes e etnias são avaliadas pela sociedade. Se o mesmo item ou expressão cultural — seja ele um estilo de cabelo, uma peça de roupa ou um gênero musical — pode ser descartado ou exaltado dependendo de quem o consome isso não só expõe a hipocrisia das valorizações, como também evidencia o racismo estrutural que permeia esses julgamentos. Quando o “fubanga” é absorvido pela alta sociedade, ele não só ganha valor, mas sua origem é sistematicamente apagada, como se os corpos negros e periféricos nunca tivessem sido os verdadeiros criadores daquela cultura. Por que o baile funk é visto como um lugar horrível e cheio de drogas, mas usar a “balinha” na rave, que também tem a presença de substâncias ilícitas, é considerado legal?


Isso reflete a lógica de que a cultura das favelas e a estética negra só têm valor quando são descontextualizadas e transportadas para um ambiente em que corpos brancos possam usufruir sem as marcas de uma origem empobrecida. No final das contas, o que é relegado como “fubanga” ou “feio” na favela ganha status quando colocado no corpo de uma celebridade branca ou em um mercado elitizado. A comparação entre Ludmilla e Anitta ilustra bem isso: a primeira, com sua origem na periferia e no funk, contrasta com a segunda, que apesar de também ter sido influenciada por essas culturas, tornou-se ícone no mainstream com um estilo mais comercial — uma, negra, e a outra, branca.


Essa inversão de valores expõe a estrutura racista e excludente da sociedade, em que a origem das culturas muitas vezes é ignorada, a fim de preservar a narrativa de que a elite é responsável por validar o que é bonito, sofisticado e relevante. Mas, ao fazer isso, a sociedade reforça a ideia de que apenas corpos brancos podem conferir valor e prestígio àquilo que nasce nas periferias e nos corpos marginalizados.


Como resultado, as pessoas e culturas de origem dessas práticas continuam invisibilizadas, enquanto o cool é sempre reescrito e apropriado de maneira seletiva, reforçando o ciclo de exclusão que limita o verdadeiro reconhecimento da riqueza cultural das comunidades.


Reflexão e resistência  


As estéticas que surgem das favelas não são meros acessórios ou fetiches de luxo, como tentam nos vender. Como diz a canção “Amarrou”: “D-d-d-drip de negona / Nasci com a boca que elas compra / Cacho de colombiana / Unha de brasileirinha / Aquilo que em você não brilha / E na bolsa tem várias de cem”. Esses versos falam diretamente sobre a cultura negra e periférica, cujos elementos antes ignorados e estigmatizados, se tornam agora desejáveis quando apropriados pelas elites.


Mas o que essas práticas realmente representam? Elas são reflexos de uma sociedade que ainda não sabe reconhecer a verdadeira riqueza cultural das periferias e da comunidade negra. Elas são resistências, sim. Resistência de quem se vê constantemente à margem, mas ainda assim cria, reinventa e resiste. A cultura periférica, enquanto for tratada como uma mercadoria desprovida de significado, continuará passando pelo ciclo de apropriação sem reconhecimento. É o racismo repaginado, vendido como novidade, mas sem nunca reconhecer sua raiz.


O que nos resta, portanto, é continuar a luta para que a estética periférica seja valorizada não apenas por seu apelo visual, mas pela história, luta e resistência que ela carrega. A periferia é mais que uma moda; ela é a resistência viva, pulsante e cheia de poder. E enquanto não nos livrarmos das amarras da exclusão, a luta continua.


“Mas quero sempre mais, mediocridade não combina

E os bico sempre se pergunta ‘qual que é a fita dessas mina?’

A sua moda é nós que dita”— SUV, Tasha & Tracie


Publicado por: Carolina de Vasconcelos




Faculdade de Comunicação Social | Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)

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