“Brain rot” e o impacto das redes sociais nos jovens: o que a nova lei na Austrália tem a dizer sobre o futuro da era digital
- Gustavo Fernandes
- 6 de jan.
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Atualizado: 28 de jan.
Expressão inglesa, eleita a palavra do ano, vai diretamente ao encontro de política adotada pelo país da Oceania
Uma notificação quase silenciosa faz o celular tocar em um dos cantos da mesa da cozinha, há três metros do sofá da sala: “Deve ser o Instagram”, afirma Júlia (nome fictício, pois ela optou por não se identificar na matéria), 19 anos, sorrindo sem parecer se importar. Ao contrário de uma boa parte das pessoas da sua faixa etária, o impulso involuntário de parar tudo à sua volta e checar o motivo do barulho vindo do celular não foi maior do que a intenção de estabelecer uma conversa cara a cara. De fato, para ela, a conversa era mais importante.
Desde jovem, Júlia foi uma jovem criativa e comunicativa, apaixonada por fotografia e moda. Aos 16, criou um perfil no Instagram para compartilhar suas produções fotográficas e seus looks do dia. Em pouco tempo, ganhou visibilidade e cada vez mais seguidores, o que inicialmente a deixou empolgada e instigada a continuar neste universo que parecia se abrir na tela do seu smartphone. Cada vez mais tempo da sua vida era dedicado ao uso das redes, até que, em determinado ponto, o que era um hobby acabou se tornando puramente ansiedade.
"Eu sentia que precisava postar todos os dias e que tinha que ser perfeita. Comecei a me comparar com outras meninas que pareciam ter vidas incríveis, corpos perfeitos e roupas caríssimas. Isso me fazia sentir que eu nunca era boa o suficiente", declara Júlia.
Com o tempo, os efeitos da exposição excessiva às redes sociais começaram a aparecer na saúde mental de Júlia e ditar até os seus hábitos de sono. Ela passou a evitar encontros presenciais com amigos por se sentir insegura em relação à sua aparência e chegava a virar a noite rolando o seu feed “sem se ligar direito no que estava vendo”, como conta. Por muito tempo, a interação cotidiana com a sua família também não existia mais, afinal, a jovem sentia que não havia nada de útil dentro da sua própria cabeça.
Sem ter ideia, Júlia se tornou refém do processo de “apodrecimento” causado pelo uso indiscriminado das redes sociais, problema que vem preocupando nações inteiras e inspirando novas regulamentações sobre a internet pelo mundo.
Cérebros podres em frente ao celular
No início de dezembro, a Universidade de Oxford, nos Estados Unidos, elegeu a expressão “brain rot” como a palavra do ano de 2024. Na tradução livre, o termo significa “apodrecimento do cérebro” e expressa uma deterioração do estado mental ou intelectual de uma pessoa devido ao consumo exacerbado de conteúdo on-line trivial ou de pouca relevância, capaz de levar os indivíduos a um estado de podridão do cérebro.
A universidade comunicou que o termo ganhou notoriedade neste ano nas próprias mídias sociais, em que se percebeu um aumento de 230% em frequência de uso dessa expressão entre 2023 e 2024, em especial, nas comunidades da Geração Z, composta por pessoas que nasceram entre 1995 à 2010 e a geração Alpha que é feita pelos nascidos de 2010 até 2025, no TikTok. Segundo a instituição, a escolha se deu após uma votação com mais de 37 mil participantes.
A eleição da expressão “brain rot” como palavra do ano demonstra que a reflexão sobre os danos causados pelos conteúdos consumidos e compartilhados nas redes sociais é uma preocupação crescente da sociedade, que se encontra cada vez mais imersa em um estilo de vida virtual que evolui gradativamente e tem forçado novos posicionamentos de países no âmbito da justiça.
Austrália traça rota sem precedentes
No busca por um caminho de mitigar o “apodrecimento” provocado pelas redes sociais na formação cognitiva, psicológica e no processo de aprendizado dos jovens, a Austrália anunciou, no fim de novembro, a proibição do uso de redes sociais para menores de 16 anos no país.
A lei, aprovada pelo parlamento australiano após meses de intenso debate, obriga as grandes empresas de tecnologia, como a norte-americana Meta – dona do Instagram e do Facebook – e a chinesa ByteDance – proprietária do TikTok – a criar medidas que impeçam que jovens com menos de 16 anos consigam acessar os aplicativos de mídia social ou, senão, encarar punições de quase 50 milhões de dólares australianos, o equivalente a 194 milhões de reais.
De acordo com o primeiro-ministro da Austrália, Anthony Albanse, a nova lei visa proteger a saúde mental e o bem-estar das crianças dos possíveis danos causados pelas redes, e significa um importante recado aos pais de que eles, bem como as infâncias de suas crianças, estão sendo protegidos e preservados pelas leis de seu país.
“As plataformas agora têm a responsabilidade social de garantir que a segurança de nossas crianças seja uma prioridade para elas”, declarou Albanese durante uma conferência de imprensa.
Essa é uma medida inédita e uma das mais severas já tomadas no mundo em relação à prevenção no ambiente virtual até o momento. Segundo o governo australiano, ela deve começar a ser testada oficialmente em janeiro de 2025 e entrar em vigor em até 12 meses.
A legislação não especifica quais plataformas serão banidas, mas segundo a ministra de Comunicações da Austrália, Michelle Rowland, pode-se esperar que Instagram, Facebook, Snapchat, X (antigo Twitter) e Reddit sejam as principais afetadas pela proibição.
O bloqueio, no entanto, não irá prejudicar as operações de todas as redes sociais, como no caso dos aplicativos de mensagem, como o WhatsApp, plataformas de jogos e apps que podem ser acessados sem nenhuma conta ou que são usados para fins educacionais, como o YouTube. Crianças que encontrarem maneiras de desrespeitar a proibição, como pelo uso de VPNs, que mascaram a localização real do usuário, não enfrentarão penalidades.
Não é a primeira vez que a Austrália adota medidas pioneiras e ao mesmo tempo polêmicas sobre a ação das big techs. O país foi o primeiro no mundo a fazer as plataformas de mídia sociais pagarem royalties aos veículos de jornalismo locais por compartilharem seu conteúdo e agora planeja engasgar cada vez mais o raio de ação dessas mesmas plataformas com a proibição etária.
"É importante que as plataformas digitais façam sua parte. Elas precisam dar suporte ao acesso ao jornalismo de qualidade que informa e fortalece nossa democracia", afirmou Michelle Rowland ao veículo France24.
Divisão dentro e fora do país
Apesar da votação expressiva pela proibição, fora das paredes do Parlamento australiano a decisão causa dúvidas quanto à maneira como será implementada, além de ser alvo de críticas em relação à restrição de um determinado segmento ao ambiente digital. Para a Comissão de Direitos Humanos da Austrália, a lei pode infringir os direitos humanos dos jovens ao interferir em sua capacidade de participar da sociedade.
"Os baby boomers estão tentando dizer aos jovens como a internet deve funcionar para que eles se sintam melhor", disse Sarah Hanson-Young, senadora do Greens Party, durante uma sessão no Senado australiano.
Em uma publicação em seu perfil oficial no X, plataforma que é dono, Elon Musk afirmou que a nova lei sinaliza “uma maneira secreta de controlar o acesso à internet por todos os australianos".
Já a Meta soltou um comunicado oficial, logo após o anúncio da proibição pelo governo australiano, afirmando que a legislação foi "apressada".
"Estamos preocupados com o processo, que apressou a aprovação da legislação e não considerou adequadamente as evidências, o que a indústria já faz para garantir experiências adequadas à idade e as vozes dos jovens", assevera o comunicado.
Há também quem afirme que a medida pode acabar gerando um efeito rebote, ao fazer com que os adolescentes proibidos de usar as redes sociais acabem recorrendo a partes mais obscuras e ainda mais perigosas da internet, onde não existem diretrizes de segurança ou proteções à privacidade do usuário.
Nova conexão
Com o apoio dos pais, Júlia procurou terapia e, aos poucos, começou a se desconectar das redes sociais. Ela afirma que sentia que estava perdendo uma parte da sua identidade e que a ajuda psicológica a ajudou a se aceitar e entender que aquele comportamento anterior não era saudável para sua vida. Hoje, Júlia ainda usa as redes, mas conta que aprendeu a dar prioridade para o mundo real e a valorizar mais quem é, para além das curtidas e mensagens em posts. Júlia aprendeu a se reconectar consigo mesma.
"Quero que as pessoas saibam que buscar ajuda nessas horas é fundamental. É possível recuperar o controle e viver de forma mais equilibrada. Dar valor ao que realmente importa, sabe?”
Publicado por: Giulianne Sena